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05/01/2018  - Os feminicídios provaram em 2017 que nenhuma ''Mayara'' está a salvo
 
Izabela Sanches e Geisy Garnes - Campo Grande News

Mayara Amaral, 27, era forte, mas também sensível. Composição e trajetória profissional, indicam amigos e família, uniam-se para formar uma mulher que sabia o que queria. Enquanto relacionava-se com quem bem entendia, portava, para orgulho da família, um diploma de mestre pela UFG (Universidade Federal de Goiás). Para o mestrado, estudou a relação entre as mulheres e a composição para o violão.

Foi a liberdade, também, que a aproximou de Luis Alberto Bastos Barbosa, 29 anos. “Cegamente apaixonada”, desabafou a irmã mais velha, Pauliane, sobre o relacionamento.

Mayara Fontoura Holsback, 18 anos, era forte à sua maneira, e também, à sua idade. Liberdade, como pontuou Manoel de Barros, “caça jeito”. Moradora da periferia e oriunda de uma família que queria, mas não podia ajudá-la, Mayara foi buscar os próprios caminhos. Ainda adolescente conheceu, segundo uma amiga, a paixão de sua vida: o handebol. Foi na escola que formou laços para além do próprio lar. Foi na escola, também, que tentou sonhar para além do que a condição lhe permitia.

Mas as condições, já alertam pesquisadores Brasil afora, marcam o Homem. Para as duas Mayaras, ainda assim, as condições marcam a Mulher.

É incerto o tempo que levou Mayara a deixar a escola, envolver-se com homens mais velhos, esquecer de si mesma e viver para o outro. É incerto, também, o tempo que levou Mayara a conhecer Roberson Batista da Silva, 33 anos, o Robinho. Ao menos 35 passagens pela polícia, tentativa de feminicídio a tiros e dez anos de extensa ficha criminal marcam a identidade do então ‘companheiro’. Mais incertezas marcam a contradição entre o relacionamento e o envolvimento de Mayara com a prostituição.

O fim

No dia 24 de julho deste ano Mayara Amaral foi vista pela última vez com vida. Era uma segunda-feira e Mayara saiu de casa com destino ao ensaio de um dos projetos musicais que compartilhava com quem estava apaixonada. Ao fim, avisou a uma amiga que faria um caminho diferente naquele dia. Por isso, teria dito, não precisava de carona.

O destino final da musicista só foi descoberto depois. Seu corpo foi encontrado parcialmente carbonizado na estrada que dá acesso a cachoeira conhecida na Capital como ‘Inferninho’. Mayara foi morta na madrugada do dia 25 de julho, em um quarto de motel. Foi ferida a golpes de martelo e teve o corpo abandonado e incendiado no fim da tarde do mesmo dia.

Pela extensa divulgação dos casos, Mato Grosso do Sul e todo o país sabem quem foram os algozes de Mayara Amaral e Mayara Holsback. Difícil é a linha que constrói o perfil de suas vítimas. A perguntas que fica sem resposta tem razão de ser.

Especialistas e legisladoras de crimes contra a mulher alertam: a cultura dos relacionamentos afetivos ainda é marcada pela posse e pelo poder do homem sobre as mulheres. Os dois “sexos” são, hoje, considerados fortes. Um deles, no entanto, é mais ligado ao estabelecimento de poder pela violência. O desfecho, dessa forma, pode ser o feminicídio: mulheres que morrem em razão de seu gênero.

Os crimes e as tentativas de escapar das penas

Foi a partir de seu corpo carbonizado que Mayara Amaral deu a sociedade o início da investigação do crime que tirou sua vida. A confirmação de que uma mulher deixada na estrada vicinal era Mayara, veio horas depois.

A família, preocupada com seu desaparecimento, procurou a polícia e registrou boletim de ocorrência. Foi com base no depoimento da mãe, que policiais descobriram uma mensagem “supostamente” mandada por ela. O texto indicava o ex-namorado como possível autor do crime. Ele chegou a ser preso, mas foi inocentado depois de prestar depoimento. Foi então que equipes do GOI (Grupo de Operações e Investigações) começaram a refazer os últimos passos de Mayara.

Cada depoimento apontava à polícia um novo nome: Luis Alberto Bastos Barbosa. Com acesso à senha do e-mail da musicista, os policiais conseguiram, através do Google Maps, rastrear todos os lugares onde ela esteve antes de ser encontrada morta. O endereço de Luís aparecia por duas vezes no aplicativo e foi aí que os policiais conseguiram ligar o nome dele ao crime.

O rapaz mentiu. Negou o assassinato, tentou incriminar novamente o ex-namorado de Mayara e alegou que “apenas ajudava a amiga a levar o carro em uma oficina”. Mas as provas, afirmou a Deam (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher), eram incontestáveis: todos os instrumentos de Mayara Amaral foram encontrados no quarto de Luis. Além dos objetos que para ela eram parte da vida, o computador e as roupas foram encontrados com vestígios de sangue.

Luís confessou participação e apontou Ronaldo da Silva Olmedo, de 30 anos. Conhecido como ‘Cachorrão’, Luís afirma que ele foi “mentor de um plano de roubo e responsável pelos golpes que tiraram a vida de Mayara”. Ao detalhar o crime, ele afirmou ter “apenas participado como coautor” e ainda indicou um terceiro nome, Anderson Sanches Pereira, 31. Este, defendeu, teria comprado o carro da vítima e ajudado a esconder o corpo de Mayara.

A versão muda conforme avançavam as investigações

Ronaldo foi inocentado e Anderson, responsabilizado apenas pela receptação do carro de Mayara Amaral, um Gol da década de 1990. Ele declarou ter comprado de Luís “por R$ 1 mil”.

O caso, então tratado pela polícia como latrocínio, ganhou repercussão nacional. Mulheres do país inteiro ficaram chocadas com a morte da musicista, com a repercussão e com a forma como Luís colocou-se como vítima e Mayara, julgada como responsável pela própria morte.

Mulheres mobilizaram-se, saíram às ruas e foram autoras de pedidos para que o crime fosse tratado como feminicídio. A tipificação ainda é nova para os juristas. Isso porque a qualificação do homicídio divide interpretadores da lei quanto à pena. Ligado aos crimes que atentam contra o direito de propriedade, o latrocínio, em muitos casos, rende penas de regime fechado maiores que o feminicídio.

Depois da polêmica instalada, Luís passa a afirmar que matou a musicista sozinho: “um rompante de raiva durante uma discussão”. A polêmica que mobilizava a opinião pública também se transformou em impasse no judiciário: o caso está parado à espera do Tribunal de Justiça decidir se será julgado como feminicídio, com a decisão nas mãos do júri, ou como latrocínio, em que o juiz decide a pena.

A outra Mayara

‘Robinho’, como é chamado, estava foragido quando conheceu Mayara. Em 2016, segundo a polícia, acabou preso ao ser parado em uma blitz. Suspeito, à época, somava duas condenações: três anos foi o que o Tribunal do Júri lhe deu por tentar tirar a vida da então companheira de 25 anos. Antes que a lei de feminicídio fosse sancionada, em 2011, foi condenado a três anos por tentativa de homicídio e a três meses pelo crime de lesão corporal.

Robinho cumpriu parte da pena e recebeu a liberdade no dia 14 de setembro. Saiu da prisão, conforme afirmou a família de Mayara Holsbach, e passou o dia com ela. Então deixou a casa e durante a madrugada, após dormir com ela, tirou a vida da companheira. Fugiu em seguida. Assim como Luís, uma mensagem de texto proporcionou que as investigações ‘entortassem’ para um caminho diverso. Uma mensagem de texto enviada a um antigo companheiro de cela: “Me vinguei, eu matei ela”.

Avisada pela família, a polícia arrombou a porta da casa e encontrou o corpo de Mayara Holsback em cima da cama, enrolado em um edredom. A arma usada no crime, uma tesoura, foi encontrada ao lado do corpo de Mayara. Vestígios de sangue marcavam o colchão e a parede do banheiro. Marcas de mãos com sangue nos interruptores da parede também foram pistas deixadas à polícia civil de Mato Grosso do Sul.

Mayara Holsback, apontou a perícia, foi atingida por três golpes: todos no pescoço, todos fatais. Um atingiu a jovem na traqueia e outros dois na artéria carótida. Não havia sinais de luta no local, “sujidade” ou qualquer substância debaixo da unha de Mayara, indícios, para as investigações policiais, de que a vítima teria reagido.

A polícia buscou em toda a cidade, conforme explicou à reportagem, mas Robinho não foi encontrado. Depois de 38 dias foragido, entrou em contato com o Campo Grande News e por mensagens de WhatsApp afirmou que “gostaria de contar sua versão dos fatos”. Relatou que “estava na Argentina e que só voltaria a Mato Grosso do Sul depois que tivesse a liberdade decretada”.

Robinho se apresentou à delegada titular Ariene Nazareth, responsável por investigar o caso, após 51 dias foragido. No dia 11 de novembro, declarou a mesma “versão dos fatos”. Hoje, ele é réu acusado por feminicídio duplamente qualificado.

Uma cultura de posse

Em meio às investigações da morte de Mayara Holsback, a reportagem conversou com uma delegada da Deam e com uma das defensoras do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher), ligado à Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul. As duas aplicadoras da lei informam números de uma sociedade onde ser mulher é pode ser livre, mas, também, correr constante perigo.

O Brasil é o 5º país do mundo com mais crimes de feminicídio, Mato Grosso do Sul, com menos de 3 milhões de habitantes segundo o último censo, o 9º Estado. Desde que a lei foi sancionada em 2015, 191 casos foram contabilizados pelo MPE-MS (Ministério Público Estadual). Foram 65 casos desde então, explicou a Deam. Além dos 65, 118 tentados. Na Capital do Estado, 16 consumados e 37 tentados.

Mato Grosso do Sul é considerado um Estado modelo em investigações de crimes contra à mulher. Foram as características culturais que trouxeram um protocolo da ONU (Organização Nacional das Nações Unidas) logo que a lei foi implementada, o que possibilitou treinamento às aplicadoras e aos aplicadores da lei e a abertura de uma das únicas CMBs (Casas da Mulher Brasileira) do país.

“Aqui, a diferença é o perfil do agressor, nas outras delegacias, no plantão, o agressor é uma pessoa estranha do lar, do âmbito familiar. Aqui não, o agressor está ao lado da vítima. É o crime que a gente chama de ''intramuros''. Ele está dentro de casa, e é muito mais difícil para a mulher denunciar aquele que é seu companheiro, seu marido, seu namorado. Ele está ali 24h do seu lado, por isso algumas mulheres ainda têm essa barreira em vim denunciar”, explicou a delegada da Deam, Fernanda Felix Carvalho Mendes.

O que Fernanda explica tambem contam os números. Defensora do Nudem, Thaís Dominato Silva Teixeira afirma que as mulheres demoram, em média, 10 anos para sair do ciclo da violência, 50,3% dos casos ocorrem no que é conhecido como “espaço doméstico”. Esse espaço doméstico, é, para as mulheres, o espaço do afeto. Um tapa ou empurrão são detalhes muitas vezes não percebidos por autores e vítimas como parte de uma história que pode ter na aplicação da violência desmedida, o feminicídio.

“É onde mais as mulheres morrem, dentro de casa. Onde mais elas precisavam encontrar proteção e onde elas estão encontrando a morte. Também com base na questão machista. A gente ainda tem muito essa questão da mulher ser considerada inferior, dela ser controlada, dela ter que estar dentro dos padrões que foram ditados para ela. Então a gente vê muito isso: quando ela resolve se separar, vem a violência pior. Ou está separada e começa outro relacionamento: é onde vem a violência pior, a tentativa ou o feminicídio consumado. Tem tudo a ver, mesmo, com essa questão do machismo. Com essa questão da cultura, do patriarcalismo”, comenta Thaís.

Presas pelo afeto

É semelhante o perfil dos autores dos crimes que tiraram a vida de duas Mayaras diferentes e iguais. As declarações são as mesmas: “a culpa não foi minha”.

Luís falou do “uso de drogas” e culpou Mayara Amaral por ter “zombado da namorada” enquanto os dois teriam “conversado sobre ter uma doença sexualmente transmissível”. O autor deixa escapar, nos depoimentos, um detalhe: a raiva.

Robinho, mesmo foragido por cerca de um mês, alegou legítima defesa. Afirmou que Mayara Fontoura, de 18 anos, o ameaçava. “Ela era garota de programa”, declarou, “tentou matá-lo quando os dois já estavam prontos para dormir”. “Apenas me defendi”. Na luta com a jovem, ele afirma ter ficado ferido. “Ela vivia uma vida suja”, afirmou quando buscou o jornal para contar “sua versão dos fatos”.

Consideradas mais frágeis porque deixam inundar-se de emoção, mulheres abrem suas vidas, mas também, podem perdê-las. Marcada por ideias de racionalidade, o lado emocional é, ainda hoje, considerado menor.

“A mulher quando está presa ao ciclo da violência, que ela não consegue romper, são vários os motivos. A dependência econômica é um dos grandes fatores, você não conseguir se libertar de uma relação por conta da dependência econômica. A gente atende aqui mulheres que, às vezes, têm 8 filhos, então como é que ela vai sair daquele ciclo, como é que ela vai cuidar desses filhos? Ela não tem trabalho, não tem qualificação, não tem profissão, mas além da dependência econômica, tem a dependência emocional”, explica a defensora.

Ainda assim, a lei é nova e também é nova a pesquisa, a ciência que estuda os gêneros, o masculino, o feminino e como ambos os “sexos” estabelecem poder um sobre o outro. É o que explicou a consultora sênior de crimes contra a mulher do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Olaia Hanashiro, ao tentar esclarecer porque grande parte dos casos ainda não são registrados como feminicídio. Em Mato Grosso do Sul, levantamento do Fórum aponta 136 mortes violentas de mulheres, em 2016, "com características de feminicídio", mas apenas 34 casos registrados com o qualificador.

"O que a gente percebe é que a lei é muito recente, esse registro é sub notificado, porque ainda não existe uma orientação clara. Muitos casos registrados como comuns já poderiam ser enquadrados como feminicídio, porque a maioria se dá no âmbito da violência doméstica, feminicídios íntimos", comenta.

Ainda assim, a subnotificação esbarra no medo de denunciar. Ao conceder a entrevista dentro da CMB, na Deam, Fernanda foi interrompida por uma escrivã que relatava violência doméstica enquanto o assunto, era violência doméstica. “A gente ouve aquela frase, em muitos boletins: se você não for minha não será de mais ninguém, que caracteriza ameaça. Depois, quando ela não quer mais o relacionamento, quando ela tenta separar, esse caso mesmo que a escrivã veio dizer, é difícil o homem aceitar a separação”, explica.

A lei 13.104, a lei do feminicídio, afirma que considera-se que há razões de condição de ''sexo'' feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

"É uma cultura de violência contra a mulher, é um crime que passa pela condição de ser mulher, de ódio ou de posse, que é marcado por uma relação de poder, em relação a essa mulher, ao controle, eles acontecem quando essa pessoa sente que perde o controle", esclarece a consultora do Fórum.

Vem daí, defendeu Olaia, a importância de que o poder público invista nas autarquias que aplicam a lei. “Você tem outra visão de tudo, das dificuldades que as mulheres ainda enfrentam, então a gente começa a aprender a lidar com o não julgamento, entender o processo que cada uma vive, a entender as dificuldades que cada uma vive, de entender que ela não está ali porque ela quer. A desmistificar umas coisas que, às vezes, a gente cresce ouvindo falar. Coisas como ‘ah, mulher gosta de apanhar’. Então a gente começa a fazer todo um entendimento, toda uma compreensão de que isso não é verdade, e aí a gente começa a querer despertar isso em todo mundo também. É difícil ainda... tem a ver com a educação também, é cultural”, contou Thais.

Enquanto isso, autores seguem presos. Enquanto leis e investigações avançam, mas a cultura teima em olhar para trás, os crimes contra a mulher em Mato Grosso do Sul indicam que nenhuma Mayara está a salvo.

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