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18/08/2016  - A emoção em plenário
 
Milton Mattos, promotor de justiça em Tangará da Serra, Mato Grosso. Artigo veiculado no site do MP-MT

A luta do Promotor de Justiça na tribuna do tribunal do júri é das mais árduas, uma vez que o convencimento do jurado acerca da tese ministerial não é obtido apenas pela simples apresentação da prova. Mas, reside, também, na empatia e, não menos importante, na paixão/emoção que o agente do parquet transmite em plenário.

Para se alcançar uma acusação bem-sucedida, o promotor de justiça deve estar não só afiado sobre as provas produzidas nos autos e atento às teses defensivas, adiantando-se a elas, de modo a esvaziar o discurso da defesa. Deve, também, manter um olhar sincero e transmitir aos jurados seu sentimento de indignação frente ao injusto.

Não é por outra razão que o promotor do júri deve realizar o exercício diário de lutar contra sua própria brutalização, ou seja, não pode endurecer seu coração e se tornar insensível a perda alheia.

Inobstante, apesar de não podermos nos tornar insensíveis a dor alheia, é certo também que não podemos experimentar, em nossa própria pele, todo o sofrimento que passa diante de nossos olhos, por razões óbvias. Todavia, em alguns casos, essa couraça que nos protege da dor é atravessada e nos atinge em cheio.

Citarei, dentre tantos, um júri que realizei na Comarca de Jaciara.

Lembro-me que ao receber o inquérito, ao capeá-lo, senti um aperto no coração ao perceber que a vítima era uma criança de apenas 1 ano e 06 meses, mesma idade, à época, de minha filha mais nova. Não foi tranquila a tarefa de analisar cuidadosamente a necropsia da infante.

No entanto, o mais brutal foi perceber que o responsável pela morte da criança, o qual o inquérito apontava, fora o padrasto, atuando sob omissão penalmente relevante da mãe da vítima.

Provas não faltavam, os depoimentos colhidos eram seguros e apontavam que a criança fora submetida por mais de dois meses a espancamentos patrocinados pelo padrasto, que não tolerava o choro da infante e se irritava facilmente.

A vítima, pouco antes de falecer, frequentou a creche municipal e cuidadoras, no primeiro banho que deram na pequena, vislumbrarem os inúmeros hematomas que percorriam o corpo da menina e acionaram o Conselho Tutelar informando da situação.

As conselheiras, por sua vez, visitaram a casa da genitora, ora indiciada, que deu uma desculpa esfarrapada de que a sua filha havia se machucado brincando com a irmã gêmea.

Além das conselheiras, aos familiares a investigada dizia as mesmas lorotas, sempre encobrindo as agressões praticadas por seu companheiro, com o qual se relacionava há apenas 05 meses. Tudo levava a crer que a genitora encobria os malfeitos de seu comparsa para que este não a abandonasse.

No dia do crime a vítima, sua irmã gêmea e o irmão mais velho, com cerca de 03 anos, brincavam e, num dado momento, a vítima começou a chorar, impedindo o padrasto de continuar assistindo a um jogo de futebol que passava na TV. Irritado, o mesmo agrediu a pequena violentamente na região do estômago, provavelmente com um chute, levando-a a um quadro de choque hipovolêmico.

Os Réus, após combinarem uma história sobre o que havia acontecido, levaram a criança para o hospital, informando aos profissionais de saúde que a menina havia caído da cama ao disputar uma boneca com a irmã gêmea.

Não preciso dizer que a história não convenceu os médicos plantonistas que acionaram a Polícia Civil, que prendeu o casal em flagrante delito.

A criança faleceu após alguns dias, mesmo tendo recebido toda assistência médica necessária.

Com esse panorama probatório e fático denunciei o padrasto por homicídio triplamente qualificado, por motivo fútil, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima.

Já a genitora fora acusada de homicídio qualificado pelo meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima, na forma do art. 13, §2º, letra “a” c.c art. 29, todos do Código Penal.

Chegando-se no plenário do Tribunal do Júri, passei a imaginar qual seria a melhor estratégia para convencer os jurados a condenarem uma mãe pela morte da própria filha.

O desafio era grande porque, a princípio, não era a genitora a agressora de fato, mas sim a cuidadora que não exerceu seu mister, permitindo, com sua omissão, que sua prole ficasse sujeita ao talante assassino de seu companheiro.

A defesa certamente se valeria da tese do perdão judicial, brandindo aos sete ventos que a morte da filha já era a maior pena que poderia ser imputada a acusada. Também era linha defensiva a versão de que a genitora sofria maus-tratos e vivia sob constante ameaça de seu companheiro, omitindo-se, então, culposamente, e não, dolosamente.

Caberia, portanto, ao parquet convencer os juízes de fato de que uma vida inocente fora perdida em razão do egoísmo da genitora que colocou seu próprio interesse, qual seja, seu relacionamento com o agressor, acima do bem-estar de sua prole, merecendo, por isso, severa punição, além, é claro, de afastar a tese de violência doméstica.

Por sua vez, a defesa do padrasto tinha como tese principal, até então, a negativa de autoria e subsidiariamente a desclassificação do crime de homicídio para o de maus-tratos com resultado morte.

Nessa toada, caberia ao MP apresentar aos jurados provas suficientes para ligá-lo à agressão sofrida pela criança, que fora sua causa mortis, o que também não seria fácil, já que as únicas testemunhas oculares eram a irmã gêmea da vítima, que não conseguia falar em razão da tenra idade e o irmão mais velho com apenas 03 anos.

Pois bem, a instrução realizada perante os jurados foi extremamente favorável ao Ministério Público, eis que ficou cabalmente demonstrado, através da oitiva das testemunhas, que o suposto acidente com a boneca - que acreditamos nunca tenha ocorrido - jamais seria suficiente para causar o tipo de lesão encontrada no corpo da criança.

O depoimento dos policiais civis que participaram das investigações e dos profissionais de saúde que trabalharam no atendimento da vítima não deixaram dúvidas de que um tombo da cama da criança que, aliás, teve sua altura medida, não teria o condão de causar o tipo de lesão encontrada na pequena e, ainda, jamais uma criança da idade dos irmãos da vítima teriam força suficiente para agredi-la com tal severidade.

Nessa linha de pensamento, ficou evidente que a lesão que fora a causa determinante da morte da vítima foi causada por um adulto e, principalmente, foi dolosa, jogando por terra a versão do réu de que houve um simples acidente em razão da disputa de uma boneca.

De outra banda, os depoimentos das conselheiras tutelares, servidoras da creche e familiares deixaram evidente que a ré teve inúmeras oportunidades de levar ao conhecimento dos familiares e autoridades as agressões praticadas por seu companheiro, mas preferiu mentir e encobrir os malfeitos, tudo para que não tivesse rompido seu relacionamento.

Momento crucial da instrução, a meu ver, foi o depoimento da madrinha das crianças, que revelou que um mês antes do crime os menores estiveram em sua companhia para um final de semana e, nesta oportunidade, verificou os inúmeros sinais de agressão pelo corpo das crianças, além da situação de desleixo na higiene dos infantes.

A madrinha afirmou que ao entregar os menores para a acusada, alertou-a sobre os hematomas e disse-lhe, abraçando-a, para que cuidasse melhor de seus filhos, o que deixou evidente para os jurados que a genitora tinha cabal conhecimento de tudo o que acontecia com sua prole e se omitiu dolosamente.

A madrinha, por fim, jogando uma “pá de cal” na defesa da acusada, deixou claro que a presenciou, poucos dias antes do crime, chorando desesperada porque acreditava que seu companheiro a deixaria, desconstituindo, portanto, a versão de que a ré vivia sob cárcere privado e numa relação de medo.

Importante consignar que as fotos tiradas pela madrinha nesse final de semana emocionaram a todos os presentes, já que demonstraram a situação que as crianças se encontravam, com evidentes hematomas pelo corpo, impossibilitando, como dito alhures, à defesa alegar que a genitora não tinha conhecimento dos espancamentos.

As oitivas dos familiares também demonstraram uma família sem amor, os avós da criança depuseram sem qualquer emoção, parecia que estavam falando sobre uma partida de futebol e não sobre o assassinato brutal de uma criança inocente.

A mãe, em seu interrogatório, chorava, como era de se esperar, mas aquelas lágrimas não eram de arrependimento, de alguém que perdeu uma filha e estava dilacerada pela culpa e pela dor, mas sim de alguém que lutava com todas as suas forças para escapar do cárcere.

A mãe não foi hábil, ainda, em demonstrar aos jurados que, de fato, vivia submissa ao lado do corréu. Pelo contrário, as respostas às perguntas formuladas evidenciaram que o medo de perder o companheiro foi colocado acima do bem-estar de seus filhos e que a tragédia que recaiu sobre sua filha foi anunciada com antecedência.

O Réu, sempre frio, limitou-se a negar qualquer agressão contra a criança. A defesa abandonou, em plenário, a tese da desclassificação para maus-tratos com resultado morte.

Iniciados os debates, lembro-me como ontem que no início de minha fala, extremamente emocionado e tocado com a tragédia que saltava aos meus olhos, tive grande dificuldade para iniciar a exposição, necessitando, confesso, de um copo de água e alguns minutos para dar início a árdua tarefa que me esperava.

Ao final, os jurados reconheceram as responsabilidades dos Réus e os condenaram nos termos da denúncia. À acusada foi imposta pena de 16 anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, e ao corréu reprimenda de 17 anos de reclusão, também em regime inicialmente fechado.

Apesar do sentimento de dever cumprido e de que, à luz da nossa legislação, a justiça foi feita, nada apaga da memória este júri, que ficou gravado em meu coração e minha mente.

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