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17/04/2017  - Na dúvida, pela competência do Júri
 
José Acácio Arruda, promotor de Justiça, Ministério Público de Minas Gerais

Dentre as tradicionais regras processuais aplicáveis ao Tribunal do Júri uma se tornou em tempos recentes objeto de controvérsia, refutada por parte da doutrina. Trata-se do princípio tradicionalmente aplicado pelo juízo singular na fase de admissibilidade, ou não, da acusação perante o Tribunal do Júri: havendo dúvida deve-se pronunciar. Ou como diz o conhecido brocardo latino: in dubio pro societate.

O Código de Processo Penal, regulamentando o processo criminal perante o Tribunal do Júri, não possui uma disposição expressa nesse sentido, qual seja, de que se o juízo singular tiver dúvida deve pronunciar o acusado.

O Código dispõe no artigo 413 que se o juiz se convencer da existência do crime e houver indícios suficientes de autoria deve mandar o réu a julgamento pelo Júri (pronunciar).

E no artigo 415 dispõe quando o juízo singular poderá absolver sumariamente o réu, não incluindo entre as hipóteses a da insuficiência de provas.

Essas disposições levam a interpretação sistemática de que, para a pronúncia, não é imprescindível a certeza exigida para a condenação, e que para a absolvição sumária não se aplica, nessa fase, o princípio in dubio pro reo. E por conclusão lógica, havendo dúvida, o acusado deve ser pronunciado.

A jurisprudência predominante desde longa data tem sustentado esse entendimento. No entanto, desde o advento da Constituição Federal de 1988, parte da doutrina tem sustentado que a pronúncia no caso de dúvida é inconstitucional, porque as regras do Processo Penal devem ser aplicadas conforme a Constituição vigente. Os defensores dessa posição afirmam que na pronúncia se deve acolher o princípio in dubio pro reo.

Os principais argumentos em favor de tal posição são os seguintes:

- não existe base constitucional para a aplicação do princípio in dubio pro societate.

- esse princípio é a negação da presunção de inocência.

- uma dúvida não pode autorizar uma acusação, colando uma pessoa no banco dos réus, manchando sua dignidade.

- não se deve levar a julgamento pelo júri quando não houver provas suficientes, porque há enorme risco de haver uma condenação por outras razões que não a suficiência de provas.

Contra esses argumentos se pode responder, na mesma ordem:

- não há base constitucional para o juiz usurpar a competência do júri, e proferir a decisão de mérito absolutória com base no entendimento de que as provas são insuficientes para a condenação.

- a presunção de inocência impede a execução da sentença condenatória enquanto não provada a culpabilidade, mas não impede o manejo da ação penal.

- se o Ministério Público só puder fazer a acusação quando houver certeza da culpabilidade, então juiz e júri são desnecessários.

- o risco de o júri proferir um veredicto injusto, é o mesmo de o juiz errar e proferir uma sentença injusta.

Além dessas respostas aos argumentos contrários à aplicação do princípio in dubio pro societate na pronúncia, sustentamos uma abordagem diferente para a questão, com base na definição histórica do que seja o Tribunal do Júri, e também na Constituição.

A Constituição acolhe, implicitamente, um princípio fundamental para a existência do Tribunal do Júri, e do qual decorrem os demais princípios aplicáveis ao julgamento pelo Júri.

A Constituição reconhece a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei (art. 5º, inciso XXXVIII). Aí é de se perguntar: o que é a Instituição do Júri reconhecida pela Constituição?

Dentre as muitas definições (não há consenso), a mais aceita é a de que é um tribunal composto por juízes leigos, escolhidos entre pessoas do povo, incumbido de julgar causas judiciárias, e proferir um veredicto.

Tal definição apenas descreve, superficialmente, o que é o Tribunal do Júri. Para compreender melhor é necessário buscar suas raízes históricas em um passado já distante, na velha Inglaterra, quando no conflito entre governo (rei) e governados (súditos) surgiu um modelo no qual o julgamento não fosse feito por um juiz do rei, mas por juízes que fossem pares do acusado e, por presunção, não comprometidos com os interesses do rei.

Assim os barões revoltosos de 1215 impuseram ao rei o reconhecimento, na Magna Carta, do direito a um modo de julgamento, então já praticado em determinadas situações e circunstâncias, como uma regra geral: nisi per legale judicium parium suorum – lawfull judgement of his peers – julgamento legítimo por seus pares.

O desenvolvimento do direito inglês (Common Law) consagrou que o Tribunal do Júri é nada mais nada menos do que um julgamento legítimo por seus pares.

A subsequente difusão do Tribunal do Júri para outros países manteve esse conceito. Quando adotado no Brasil em 1821 por decreto do Príncipe Regente, para julgar crimes de imprensa e contra a economia popular, foi mantido esse conceito. O Tribunal do Júri era composto por jurados – pessoas leigas – incumbidos de julgar o acusado. O Brasil adotou, então, o julgamento legítimo por seus pares.

Nas Constituições Brasileiras subsequentes essa instituição foi mantida, e na vigente Constituição figura como garantia individual e insuscetível de abolição.

Para efetivar essa garantia e não permitir que se abram exceções, a Constituição fixou a competência do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida, sem prejuízo a que a lei infraconstitucional amplie essa competência, mas nunca a reduza. Para as causas que a Constituição fixa a competência do Júri, o julgamento pelo Júri é a regra geral, sendo vedado que seja substituído pelo juiz togado, salvo quando a própria Constituição fixa outra competência, ou em duas circunstâncias excepcionais.

Se a garantia é a de um julgamento legítimo por seus pares, permitir que o juiz togado se substitua ao Júri pode anular completamente tal garantia.

Embora a Constituição Federal fixe a competência do Tribunal do Júri para julgar as ações penais por crimes dolosos contra a vida, o Código de Processo Penal, no artigo 415, autoriza que o juiz togado absolva o réu sumariamente. É a primeira circunstância excepcional.

Temos ai o que parece ser uma flagrante inconstitucionalidade. Como o CPP, lei infraconstitucional, pode estabelecer uma exceção à competência determinada pela Constituição?

A resposta exige uma interpretação da Constituição. Como ela fixa a competência do Júri como uma garantia para os acusados de cometerem crimes dolosos contra a vida, entende-se que essa garantia se aplica somente no sentido de que tais acusados não podem ser condenados pelo juiz togado, mas não impede que os acusados sejam previamente absolvidos pelo juiz togado antes do julgamento pelo Júri.

Tal regra, não explícita na Constituição Federal, tem sua raiz nas origens do Júri Inglês. Ninguém pode ser condenado pelo juiz do rei, mas somente por seus próprios pares. Ao contrário, o réu podia ser absolvido pelo juiz, quando este entendesse que não havia justa causa (de direito e de fato) para condenar o réu. O desenvolvimento desses princípios foi longo e intermitente, até chegar ao que se denomina directed verdict (veredicto direcionado) e judgment notwithstanding the verdict – JNOV (julgamento não obstante o veredicto).

No sistema jurídico norte americano existe a chamada motion for judgment of acquittal – petição para o juiz absolver o réu, equivalente em nosso sistema à absolvição sumária prevista no artigo 415 do CPP. Lá, atualmente está expressa, por exemplo, no Federal Rules of Criminal Procedure – Código de Processo Penal Federal dos Estados Unidos. A regra 29 desse estatuto processual dispõe que:

- logo depois da apresentação das provas da acusação, o acusado pode requerer ao juiz que se antecipe ao júri e profira um julgamento absolutório, com a alegação de que as provas da acusação são insuficientes para um júri razoável proferir um veredicto condenatório; o mesmo pedido pode ser feito depois de concluída a apresentação de todas as provas (directed verdict).

- o mesmo pedido pode ser feito após o júri proferir um veredicto condenatório (judgment notwithstanding the verdict).

No caso do directed verdict não cabe apelação pela acusação. No caso de judgment notwithstanding the verdict a acusação pode apelar para a instância superior.

No directed verdict percebe-se que é permitido ao juiz se antecipar ao júri e absolver o acusado.

Regra semelhante ao directed verdict foi acolhida no direito brasileiro e se perpetuou na medida em que as nossas diversas Constituições mantiveram ou reconheceram a instituição do Júri. Assim a Constituição reconhece a instituição do Júri conforme ela foi adotada entre nós, ou seja, com a regra de que nos casos de competência do Júri, só este pode proferir uma condenação, não havendo impedimento a que o juiz togado, antes do julgamento pelo Júri profira uma absolvição.

Mas ai se criou um problema de interpretação. Se o juiz togado não absolve sumariamente o acusado, então não seria porque entendeu que o caso é de condenação?

Para evitar esse dilema é que a absolvição sumária só é permitida em hipóteses restritas e excepcionais, enumeradas no artigo 415 do CPP. O juiz pode se antecipar ao Júri e proferir uma sentença absolutória se:

- provada a inexistência do fato;

- provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

- o fato não constituir infração penal;

- demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

A prova de qualquer uma dessas hipóteses de absolvição sumária deve ser desprovida de qualquer dúvida. A certeza deve imperar a tal ponto que seja desnecessária a atuação do Júri. Nossa jurisprudência evoluiu nesse sentido, e a lei processual não acolhe a hipótese de insuficiência de provas para a absolvição antecipada do réu.

No sistema norte-americano é permitido ao juiz considerar a insuficiência de provas, mas de modo limitado. Uma petição para julgamento de absolvição (motion for judgment of acquittal) se baseia na alegação de que as provas apresentadas são insuficientes para que um júri razoável conclua pela culpa além de uma dúvida razoável. O réu pode pedir ao juiz para absolvê-lo de todas as acusações ou apenas alguns delas. Mas os juízes não podem deferir uma petição de julgamento de absolvição apenas porque eles pensam que o júri deverá absolver o acusado. Em vez disso, deverá considerar as provas à luz mais favorável à acusação e, sob essa ótica, as provas devem estabelecer a ausência de culpa de forma muito clara. Ou seja, até mesmo lá, nesse ponto, a balança da justiça vai pender em favor da sociedade – in dubio pro societta. Tanto é que são raros os casos de deferimento da motion for judgment of acquittal.

Em nosso sistema, a lei processual não consigna a hipótese de o juiz considerar a insuficiência de provas para se antecipar ao júri e absolver o réu. As hipóteses do artigo 415 do CPP são enumerativas e não exemplificativas. E como a competência do júri é determinada em sede constitucional, somente razão da mais alta relevância pode permitir tal competência ser excepcionada.

É a certeza da inocência do acusado que autoriza a competência constitucional do Júri ser excepcionada e o juiz togado se antecipar ao Júri para absolver o acusado. Sem ela prevalecerá a competência do Júri.

Na hipótese em que não exista essa certeza, e permitir que o juiz se substitua ao Júri, para absolver o acusado aplicando o benefício da dúvida, estar-se á reduzindo a competência do Júri, estabelecida constitucionalmente, sem razão da mais alta relevância. Essa razão é que não se deve levar a julgamento alguém cuja inocência já se acha comprovada sem nenhuma dúvida.
A existência de dúvida não pode autorizar que a competência constitucional do Júri seja afastada, porque se tratando de um juízo de admissibilidade, os requisitos exigidos são menores que aqueles exigidos para se proferir uma sentença condenatória.

A inimputabilidade do acusado é segunda circunstância excepcional que autoriza ao juiz togado se antecipar ao júri e absolver o réu. Mesmo provadas a existência do fato e a autoria, não haver exclusão de antijuridicidade, se o acusado for inimputável, na forma do artigo 26 do Código Penal, o juiz não o pronunciará, mas absolverá e aplicará a medida de segurança.

Aí outra circunstância de extrema relevância: não se leva a julgamento pelo Júri quem, comprovadamente, não pode ser responsabilizado pelo crime, isto é, o acusado é inimputável, conforme definido no Código Penal.

Inocorrentes essas duas circunstâncias de extrema relevância, a pronúncia é impositiva.

A pronúncia, por ser um juízo de admissibilidade da acusação perante o júri, é em si mesma uma sentença que define a competência para o caso que examina.

Se não ocorrer qualquer das duas circunstâncias excepcionais, e por mais que existam dúvidas, o juiz não pode condenar nem absolver, porque não tem competência para tanto, mas apenas pronunciar acusado, o que não consiste em um juízo de condenação, mas apenas um juízo de admissibilidade da acusação perante o Júri. Esse juízo de admissibilidade nada mais é do que a afirmação da competência do Júri.

Mas se o juiz togado tem dúvidas então não seria o caso de impronunciar, na forma do artigo 414 do CPP?

Como já vimos, ao examinar o caso, não sendo hipótese de absolvição sumária, o juiz togado não fará um juízo sobre a culpabilidade do acusado, mas somente examinará se estão presentes as hipóteses que autorizam levar o acusado a julgamento pelo Júri. Essas hipóteses são quase as mesmas exigidas para o recebimento da denúncia: demonstração de justa causa, que é a prova da existência do crime e indícios de autoria. No caso da pronúncia apenas se exige um plus nos indícios de autoria, isto é, suficientes indícios de autoria. Não é fácil diferenciar o que são “indícios de autoria”, necessários para apresentar denúncia, de “suficientes indícios de autoria”, necessários para a pronúncia. Na prática processual, “indícios de autoria” são os indícios existentes no inquérito policial, ainda não submetidos ao contraditório judicial, e “indícios suficientes de autoria” são aqueles existentes no processo judicial, submetidos ao contraditório. Assim, se os “indícios de autoria” existentes no inquérito policial, e repetidos em juízo em processo contraditório, não forem totalmente eliminados pela defesa, se tornam “suficientes indícios de autoria” e autorizam a pronúncia.

Sendo a pronúncia uma afirmação da competência do Júri, e essa competência é determinada pela Constituição, a interpretação dos artigos 413, 414 e 415 do CPP deve submeter-se proeminência da competência do Júri sobre a competência do juiz togado, uma vez que, em havendo dúvida, não há como traçar um limite claro entre as duas competências.

O CPP, deixando de incluir no artigo 415 a hipótese de absolvição por insuficiência de provas, nada mais fez do que manter a proeminência da competência do Júri sobre a competência do juiz togado nas causas que a Constituição determina. Tanto é que o CPP dispõe que no concurso entre a competência do Júri e a competência de outro juízo, prevalecerá a competência do Júri (art. 78, I).

A partir daí podemos estabelecer que o princípio a ser aplicado na pronúncia, quando o juiz tiver dúvida, não é in dubio pro reo, e nem mesmo o combatido in dubio pro societate, mas in dubio pro competentia juratore – na dúvida, pela competência do júri. De outro modo a competência constitucional do Júri é solapada.

Realmente, a aplicação do princípio in dubio pro societate na pronúncia não é prevista na Constituição. Mas a competência do Júri está prevista na Constituição, explicitamente, e para afastá-la é imprescindível uma certeza, acima de qualquer dúvida, de que o réu é inocente.

Na pronúncia, não é só o interesse da sociedade que deve ser resguardado em oposição ao interesse do réu, mas principalmente a prevalência da Constituição. A sociedade não tem interesse que o réu, sobre cuja culpabilidade há dúvida razoável, seja condenado. Se pronunciado, não significa uma condenação, mas mera perspectiva de condenação, como também de absolvição. Por isso o interesse maior é que a competência do Júri, fixada na Constituição, seja respeitada, e se houver dúvida, que seja decidida pelo Júri.

Bibliografia:

AURI LOPES JR., Direito Processual Penal, 9ª ed., pág. 1000/1002, São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
BLACK’S LAW DICTIONARY, 19ª ed., St. Paul: Thomson Reuters, 2009.
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KELLY, Acquittals by Judges in Jury Trials, disponível em: http://www.nolo.com/legal-encyclopedia/can-judge-acquit-defendant-jury-trial.html#.

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