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28/10/2020  - O avanço garantista sobre o Tribunal do Júri
 
José Acácio Arruda, promotor de Justiça do MP-MG. Artigo enviado à Confraria do Júri.

Quando o julgamento pelo júri foi adotado no Brasil em 1822, meses antes da independência, por decisão política do então Príncipe Regente Dom Pedro, muto pouco se sabia no Brasil, e até mesmo em Portugal, sobre o funcionamento do Júri. E quando o julgamento pelo júri foi regulamentado por aqui, o regramento seguiu o modelo francês, não só pela influência da revolução francesa, mas também pela semelhança de sistemas jurídicos, posto que França e Brasil adotavam sistema jurídico de origem romana. Por aqui o direito francês direito francês era mais conhecido que a common law inglesa.

Adotado o modelo Francês, que era uma cópia do júri inglês adaptada para o sistema da civil law, passamos a ter um júri que decidia respondendo a quesitos, e não apenas decidindo se o réu devia ser condenado ou absolvido, como era e ainda é na sua origem inglesa.

O veredicto do júri não era soberano, posto que era possível apelar para a real clemência do Príncipe Regente. Na lei de 1830 que regulamentou o júri havia previsão de recurso conta o veredicto, e o réu poderia ser enviado a novo julgamento com outros jurados.

Nos 198 anos decorridos (estamos em 2020) desde a instituição do júri no Brasil, a recorribilidade do veredicto não foi totalmente suprimida. Houve época em que não cabia recurso do veredicto unânime. Houve época em que a soberania do veredicto foi suprimida, durante os anos do Estado Novo, podendo a Segunda Instância reformar o veredicto. Mas a Constituição de 1946, que pôs fim ao Estado Novo, previu expressamente a soberania dos veredictos. E para adequar as normas processuais penais à essa constituição, foi disposto no CPP que no caso de o júri decidir manifestadamente contra a prova dos autos, cabe apelação, que se provida tem só o efeito de determinar um novo julgamento pelo júri. Desse modo assegurava-se que veredictos aberrantes poderiam ser corrigidos, mas também assegurava que essa correção deveria ser feita pelo júri, de modo a preservar a garantia do acusado a um julgamento por seus pares.

A jurisprudência predominante no STJ e no STF sempre reconheceu que essa limitação a soberania do veredicto – era relativa e não absoluta, inexistindo empecilho constitucional a que no caso específico de um veredicto aberrante das provas, a segunda instância determinasse um novo julgamento pelo júri, preservando a soberania deste.

Essa jurisprudência resultando da interpretação equânime da Constituição, que garante a soberania do veredicto, mas também garante o duplo grau de jurisdição, foi pacífica durante mais de meio século, e só veio a ser revista em ocasião muito recente.

Mas nos últimos doze anos tem sido visto um avanço da doutrina garantista sobre o Tribunal do Júri. Esse avanço iniciou com a Lei nº 11.689/2008, que atualizou parte do CPP para adequá-lo a Constituição Federal de 1988. Foi a partir daí que os Tribunais superiores passaram a dar uma interpretação essencialmente garantista as normas que regulamentam o julgamento pelo júri, até mesmo na falta de previsão legal.

Em 2019, quando no julgamento do RHC 117.076 em 01/08/2019, relatado pelo Min. Celso de Mello, que em decisão monocrática deu provimento ao recurso, adotando a teoria de que da decisão do júri, que absolve o réu respondendo afirmativamente ao quesito obrigatório (o jurado absolve o acusado?), não é recorrível na forma do art. 593, inciso III, letra d, do CPP. O fundamento dessa decisão foi sintetizado na ementa da decisão monocrática da seguinte forma:

EMENTA: Recurso ordinário em “habeas corpus”. Tribunal do Júri. Quesito genérico de absolvição (art. 483, inciso III, e respectivo § 2º, do CPP). Interposição, pelo Ministério Público, do recurso de apelação previsto no art. 593, inciso III, alínea “d”, do CPP. Descabimento. Doutrina. Jurisprudência. Recurso ordinário provido.

– A previsão normativa do quesito genérico de absolvição no procedimento penal do júri (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º), formulada com o objetivo de conferir preeminência à plenitude de defesa, à ao acervo probatório produzido ao longo do processo penal de conhecimento, inclusive à prova testemunhal realizada perante o próprio plenário do júri. Doutrina e jurisprudência.

– Isso significa, portanto, que a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”), caso admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (CF, art. 93, IX) – a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF, art. 5º, XXXVIII, “b”), daí resultando a incognoscibilidade da apelação interposta pelo “Parquet”. Magistério doutrinário e jurisprudencial. soberania do pronunciamento do Conselho de Sentença e ao postulado da liberdade de íntima convicção dos jurados, legitima a possibilidade de os jurados – que não estão vinculados a critérios de legalidade estrita – absolverem o réu segundo razões de índole eminentemente subjetiva ou de natureza destacadamente metajurídica, como, p. ex., o juízo de clemência, ou de equidade, ou de caráter humanitário, eis que o sistema de íntima convicção dos jurados não os submete.


Essa decisão citou numerosa doutrina, julgados do STJ e dos Tribunais de Justiça, precedentes do próprio STF (decisões do Min. Marco Aurélio – HC 146.672 – MC/DE - e do Min. Gilmar Mendes- RE 982.162/SP), estabelece um viés totalmente garantista para o julgamento pelo Tribunal do Júri.

E neste ano, no julgamento do HC 178.777, a 1ª turma do STF, por maioria de votos (Marco Aurélio, Rosa Weber e Dias Toffoli), concedeu o habeas corpus para manter a absolvição de um réu, absolvido por resposta positiva ao quesito obrigatório, ainda que a segunda instância tivesse anulado o julgamento com base no art. 593, III, d, do CPP. A 1ª Turma adotou a tese de que a absolvição dada pelo júri na votação do quesito obrigatório – o jurado absolve o acusado? – é irrecorrível, ainda que seja manifestamente contrária à prova dos autos.

Não vejo suporte legal para essa interpretação. O que vejo, mais uma vez, é uma cópia mal feita do sistema de júri anglo-saxão, mais precisamente do júri norte-americano, posto que atualmente o direito inglês tem afastado o princípio da irrecorribilidade dos veredictos, admitindo a revisão criminal pró sociedade em certas hipóteses restritas.

No sistema norte-americano o que impede recorrer do veredicto do júri é o princípio inscrito na Constituição dos EUA denominado double jeopardi, ou cláusula do duplo risco, que proíbe que alguém seja julgado duas vezes pelo mesmo delito. No direito norte-americano uma apelação do veredicto equivale a submeter o réu a um segundo julgamento, o que não é permitido pela constituição.

Não temos em nosso sistema legal a cláusula do duplo risco, tal qual existe na constituição norte-americana. Temos aqui o instituto do trânsito em julgado, que impede a interposição de recurso para a instância superior, e da litispendência, que impede a repetição de processo criminal pelo mesmo fato.

Na sistemática do CPC, o recurso interposto dentro antes do trânsito em julgado, devolve a instância superior a análise do mérito. No caso do júri a instância superior fica restrita a apreciar se o veredicto foi aberrante, manifestamente contrário a prova dos autos, e tão somente pode devolver o julgamento para o próprio tribunal do júri.

Isto é perfeitamente adequado com a garantia do duplo grau de jurisdição, prevista na Constituição Federal, bem como em tratados internacionais aos quais o Brasil aderiu. A garantia do duplo grau de jurisdição não deve servir somente a uma das partes no processo criminal, mas a ambas. Imaginemos no caso do réu condenado porque o júri respondeu negativamente ao quesito obrigatório. Ele também ficará proibido de apelar com base no art. 593, III, d, do CPP. São raras as decisões sobre condenação manifestamente contrária à prova dos autos, mas existem.

Na interpretação de que o júri pode absolver por clemência porque decide por íntima convicção e não precisa fundamentar sua decisão ao responder ao quesito obrigatório, também cabe a interpretação de que o júri poderá condenar por “vingança social” ou “justiçamento popular”, porque também estará decidindo por íntima convicção e não precisa fundamentar sua decisão.
Lembro aqui o conhecido exemplo do caso que o Ministério Público pede a absolvição do réu, mas o júri condena, e depois um dos jurados justifica: “Mesmo que ele seja inocente desse crime, merece a condenação pelos outros”. É a famosa condenação pelo “conjunto da obra” e não pelas provas.
E nesse caso, que o júri condena por intima convicção, exercitando um poder irrecorrível, poderá o réu apelar com base no art. 593, III, d, do CPP?

A lei nº 11.689/2008 que alterou a forma de formulação dos quesitos que o júri deve responder, já adotava uma cópia mal feita do modelo norte-americano. Ao invés de colocar para o júri a obrigação de só responder se o réu é inocente ou culpado das acusações a que responde, optou por manter parte do sistema anterior, no qual são questionadas primeiro a autoria e materialidade, até mesmo quando não são negadas pela defesa, e introduzir um quesito único – o jurado absolve o acusado? – englobando todas as teses defensivas. Já causa perplexidade perguntar ao júri se o réu cometeu o fato, quando a autoria nunca é negada e as provas não deixam qualquer dúvida, causa perplexidade maior ainda que se pergunte se o jurado absolve o réu, aos invés simplesmente de perguntar se o réu é inocente ou culpado. Ou seja, cópia ruim, feita pelo legislativo.

Agora o Judiciário fez outra cópia ruim, introduzindo no direito uma causa de irrecorribilidade, ainda que ela esteja prevista no CPP. Sequer se trata de uma interpretação baseada no doutrina anglo-saxão denominada “jury nullification”, uma anulação pelo júri, que pode ser entendida como o poder do júri de absolver o réu para não aplicar uma lei que considera injusta. É uma criação do sistema da common law, do direito feito pelos juízes (judge made law) Mesmo nos EUA a doutrina da jury nullification é uma questão polêmica nos Tribunais.

Aqui sequer é discutido se o júri pode absolver por considerar que a lei penal é injusta em determinado caso – essa seria uma tese defensiva – mas está admitindo que o júri pode absolver até mesmo por clemência, coisa que não tem previsão no Código Penal. O que existe no Código Penal é o instituto do perdão judicial, aplicável em hipóteses específicas (art. 121, § 5º). A absolvição por clemência não tem qualquer previsão legal. É uma criação do ativismo judicial, avançando na esfera de competência do legislativo.

Parece-me haver um avanço garantista para a adoção no Brasil de práticas oriundas do júri norte-americano em tudo aquilo que favorece o acusado. Já é discutida a adoção de número par de jurados, com o empate na votação favorecendo o réu, ou até mesmo exigência de maioria qualificada para o veredicto. E não demora serão pedidas mais restrições existentes no júri norte-americano relativas as alegações em plenário, como se já não bastassem aquelas previstas no artigo 478 do CPP.

Há os que defendem a aplicação na fase da pronúncia do princípio in dubio pro reo, mesmo não havendo previsão legal para isso (essa hipótese não está prevista no artigo 415 do CPP).

Mas cópias do modelo norte-americano naquilo que não beneficia o réu, como o cumprimento da pena imediatamente após o veredicto condenatório, ou estender os poderes de investigação do MP, têm encontrado forte oposição nos meios acadêmicos e políticos. A ordem da argumentação final perante o júri, com a acusação apresentando ao júri sua argumentação final por último, depois da defesa (devido ao pesado ônus de provar a culpa acima de uma dúvida razoável e obter um veredicto unânime); e a prisão após o indictment (pronúncia), ou liberdade provisória mediante fianças de efeito eficaz; não ressoam por aqui. Enfim, só há intensão de adotar o que favorece o réu.

Esse garantismo, depois de ter assimilado grande parte da magistratura togada, agora avança sobre o tribunal do júri. Não lhe bastam as garantias inscritas na Constituição e nas leis processuais. Agora ele quer uma garantia absoluta não prevista no ordenamento jurídico nacional. E se a cópia mal feita não vem através da lei, vem através do ativismo judicial.

Não é à toa que nossas instituições – Legislativo e Judiciário – estão cada vez mais desacreditadas.

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