Por César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri em Mato Grosso. Ex-presidente da Confraria do Júri.
No século XIX, Eça de Queiroz fez uma constatação muito lúcida: "Quanto mais conhecemos os homens mansos, mais estimamos os bichos bravos”(1). No século XX, outro grande escritor português, José Saramago, Nobel de Literatura (1998), também fez outra grande constatação: "O instinto serve melhor os animais do que a razão para o homem"(2).
Nenhum animal mata por malevolência, a não ser o animal racional, o ser humano. O homicídio é o crime mais grave de quantos possam ser previstos em lei, porque a vida é o bem supremo da pessoa humana e condição primordial e imprescindível para o gozo de todos os outros interesses, direitos e deveres humanos possíveis.
No Direito não há sangue nem número, o que leva alguns afirmarem que é uma ciência menor. Mas, com frequência, no Tribunal do Júri, que julga os crimes dolosos contra a vida, é possível verificar a existência de ambos: frieza calculada e sangue derramado. "Aquilo que eu quero, como quero e quando quero" é o lema da prepotência, arrogância, intolerância, malevolência e do ódio do assassino. Ele se sente divino em sua "onipotência" ao decretar, determinar, concorrer ou executar a morte de alguém.
Assim, alimentando o ânimo com o pão azedo do ódio, o vinho estragado da intolerância e a carne podre da violência, o assassino ataca a vida alheia, sem dó nem piedade. Muitas das vezes, de forma brutal.
O emprego de meio cruel na execução do homicídio consiste em qualificadora, que reclama o incremento da sanção penal, ante a perversidade, a brutalidade ou a impiedade demonstrada na prática do crime.
Conforme a Exposição de Motivos do Código Penal, é cruel o meio que aumenta inutilmente o sofrimento, ou revela uma brutalidade fora do comum ou em contraste com o mais elementar sentimento de piedade. Vale dizer, meio cruel é todo aquele que acarreta padecimento desnecessário para a vítima. Há dupla ofensa: 1ª) ao direito de não ser morto; e 2ª) ao direito de não ser submetido a sofrimento físico ou mental.
Como explica José Henrique Pierangeli, “no emprego do meio cruel, o agente explicita um aspecto de barbárie e ausência de elementar sentimento de piedade”(3).
Importante destacar a sapiência do legislador ao prever a cláusula de abertura no inciso III do §2º do artigo 121 do Código Penal, para que qualquer meio cruel qualifique o crime de homicídio. É o denominado meio cruel por assimilação.
Sem dúvida, um dos meios cruéis mais comuns é a reiteração de atos executórios (facadas, tiros, golpes etc.). É lógico que matar alguém através de reiterados golpes de arma branca ou tiros de arma de fogo revela a falta de piedade, além de brutalidade fora do comum. A lógica humana evidencia o sofrimento físico ou mental da vítima. Basta imaginar alguém golpeado ou desfechando vários tiros contra o seu corpo para ter a exata noção da dor física e/ou psicológica provocada pelo agente.
Ricardo Levene ensinou que "quem pode matar com um golpe e ao invés disto fere a vítima, a deixa indefesa e continua causando ferimentos cada vez maiores, a mata com crueldade"(4).
Como se sabe, o juízo natural dos crimes dolosos contra a vida é o Tribunal do Júri, logo incumbirá ao jurado decidir pela incidência da qualificadora ao votar o quesito específico. Cumpre salientar que jurado é o peritus peritorum na análise do contexto fático e probatório. É o grande juiz dos crimes de sangue. Exerce a soberania popular em seus veredictos.
Na realidade, não cabe ao perito afirmar a qualificadora, sobretudo nas hipóteses de meio cruel por assimilação. Ao juiz, na pronúncia, e ao jurado, no julgamento, é que cumprem aferir a incidência da crueldade na conduta.
Aliás, não se deve esquecer que a análise do perito na perícia das perícias, que é o exame necroscópico, é limitada ao exame do objeto material do crime de homicídio, qual seja, o corpo da vítima sob a perspectiva da Medicina Legal e não de todo o contexto fático-probatório afeto ao caso em julgamento pelo Tribunal do Júri. Quem analisa os fatos, os dados e as provas processuais é o jurado, que, em sua soberania, dá a última e definitiva palavra nos crimes dolosos contra a vida.
Por consequência, ainda que o laudo pericial tenha negado o meio cruel, o juiz, na pronúncia, e o jurado, no julgamento, na forma do artigo 182 do Código de Processo Penal, podem e devem rejeitá-lo, ante os múltiplos ferimentos causados pelo agente homicida na vítima (5).
O grau de civilização de um povo é mensurável pelo grau de proteção do direito à vida, que inclui a seriedade e a gravidade da punição ao assassino, pelo Estado. Nessa linha, o jurado deve atuar como guardião dos direitos fundamentais da próxima vítima: a condenação do assassino com rigor significa evitar um novo homicídio por ele próprio ou por assassino em potencial. É a prevenção geral e especial da pena em ação.
Infelizmente, o Brasil ocupa o pódio infame dos países que mais matam no mundo. Se fizéssemos 1 minuto de silêncio para cada uma das vítimas, anualmente, assassinada, ficaríamos em torno de 40 dias calados. Para piorar, existe hermenêutica jurídica especializada em esvaziar cadeias, e, lamentavelmente, lotar cemitérios. É a necro-hermenêutica (6).
Portanto, logo se vê que esse quadro de violência latente impede que haja espaço para a necro-hermenêutica no Tribunal do Júri. É preciso cultuar a bio-hermenêutica e exercitar a exegese que combata a cultura de morte e exalte a cultura de vida. É preciso sempre eleger a interpretação que defenda, proteja e reafirme o direito de viver. Nessa escolha está inserida a punição exemplar de quem agiu brutalmente, impiedosamente ou perversamente na prática de homicídio. Punição aquém da merecida também é impunidade. O jurado não deve fazer favor com o sangue alheio para minorar a pena de assassino, mas sim honrar a magnitude e a sacralidade da vida humana. O homicídio brutal reclama séria e grave resposta penal. Afinal, no Tribunal Popular, a razão humana deve estar a serviço da vida e da sociedade em busca de um presente seguro e de um futuro melhor.
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1 - QUEIROZ, Eça. Uma campanha alegre. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1890.
3 - PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 72.
4 - LEVENE, Ricardo. El Delito de Homicídio. Buenos Aires: Perrot, 1955, p. 187.
5 - Salvo se no laudo constar expressamente que a vítima veio a óbito logo no primeiro ferimento sofrido. Para tanto, o perito deve efetuar o diagnóstico diferencial e discriminar as lesões corporais intra vitam e lesões post mortem.