Confraria do Júri – Antônio Lemos Augusto
O mês de março de 2014 fará história no Judiciário Brasileiro, com o julgamento, em todo país, de aproximadamente três mil processos de crimes dolosos contra a vida. A iniciativa, envolvendo os conselhos nacionais de Justiça (CNJ) e do Ministério Público (CNMP), é um duro golpe na impunidade. São cerca de três mil crimes, que se relacionam a milhares de vítimas e seus familiares. Em Mato Grosso, serão 68 julgamentos. No Ceará, a previsão é de mais de 300 sessões (clique aqui e veja previsão do CNJ).
O presidente da Associação dos Promotores do Júri (Confraria do Júri), César Danilo Ribeiro de Novais, é um dos entusiastas do mutirão. Promotor de Justiça na comarca de Chapada dos Guimarães (MT), participou de 174 sessões do Júri em dez anos de Ministério Público, em nove comarcas diversas de Mato Grosso. Nesta entrevista, César Danilo defende rigorosamente o Tribunal do Júri e manifesta preocupação com o rumo que a reforma do processo penal está tomando no Congresso Nacional.
A Semana Nacional do Júri pode ser considerada como reconhecimento, pelo CNJ e CNMP, de que existe um gargalo na quantidade de julgamentos de crimes dolosos contra a vida no país?
Sem sombra de dúvida, a resposta é um absoluto sim. Como todos sabemos, a solução das lides no Judiciário é muito lenta. Com o processo afeto ao Tribunal do Júri ainda mais, por contemplar um procedimento bifásico e um julgamento solene. Além disso, em regra, a defesa dispõe de uma miríade de recursos para procrastinar a realização do julgamento, até como estratégia, em busca de um possível esquecimento do crime pela sociedade. Isso é elevado à décima potência quando o réu responde ao processo em liberdade. Tudo isso coopera para a prestação de uma justiça tardia.
Existe a crítica de que a morosidade na tramitação do processo de crime doloso contra a vida se relaciona, também, à necessidade da composição do júri. É verdadeira a interpretação de que o julgamento pelo juiz togado agilizaria a tramitação processual?
Podemos afirmar com tranquilidade que o processo afeto ao Tribunal do Júri é guiado pelo procedimento mais solene da seara Processual Penal e que lida com valores de alta hierarquia da humanidade (vida, liberdade e justiça), o que reclama uma instrução probatória séria e completa, bem como um estudo acurado do processo pelas partes, para que, assim, haja um julgamento justo, com a absolvição do inocente ou condenação do culpado. Em tese, o julgamento pelo juiz togado poderia agilizar o trâmite processual e adiantar a prestação jurisdicional. Vale ressaltar, porém, que os executivos de penas são decididos pelo juízo monocrático, porém, vemos o caos instalado nas varas de execuções penais de todo o país. Portanto, a premissa não procede.
A legislação processual penal recebeu profundas alterações nos últimos anos no que tange ao Júri. A jurisprudência formada após 2008 pode ser considerada como favorável à sociedade no que tange aos julgamentos de crimes dolosos contra a vida?
Em geral, a Lei n.º 11.689/2008, que reformou o procedimento dos crimes dolosos contra a vida, atendeu mais aos anseios da advocacia criminal do que aos interesses da sociedade. Quase não se ouviu os membros do Ministério Público no processo legislativo. Cito, por exemplo, duas novidades trazidas por essa lei que atendeu claramente aos interesses dos criminalistas em detrimento da defesa da vida e da sociedade, quais sejam: o quesito obrigatório “o jurado absolve o acusado?” e as vedações trazidas pelo artigo 478.
A primeira já causou muita injustiça e impunidade em centenas de julgamentos no Brasil. Vale dizer, mesmo que a tese única da defesa tenha sido a negativa de autoria ou participação, é dever submeter ao Conselho de Sentença o referido quesito. E não é incomum vermos o Conselho de Sentença, mesmo reconhecendo a autoria, paradoxalmente, absolver o assassino, por puro erro de entendimento sobre a indagação, quando da votação do quesito obrigatório. É a porta larga da impunidade em forma de novidade legislativa.
A segunda inovação teve endereçamento certo: o Ministério Público. Impediu-se o Promotor de Justiça de informar a verdade, os fatos processuais, aos juízes da causa. No Júri, deve imperar o debate democrático de ideias e, principalmente, o direito à liberdade de expressão. Cada argumento tem seu contra-argumento; cada prova tem sua contraprova; cada tese tem sua antítese. Incumbem, pois, às partes anotá-las e contraditá-las, com olhos voltados ao convencimento dos jurados. Afinal, como ensina a retórica, há argumentos para toda e qualquer tese. Basta elegê-los. No entanto, o legislador lançou mão desse artifício com o escopo de manietar e amordaçar o membro do Ministério Público, em prejuízo da verdade real, da democracia, da liberdade de expressão e, principalmente, da justiça.
Toda mudança legislativa deve produzir efeitos benéficos para a sociedade. Única razão de ser dela. E isso não se viu nessa lei. Infelizmente, a jurisprudência, desprezando o exercício da filtragem constitucional, tem ratificado esse absurdo legal. Portanto, tem faltado prudência no julgar, como era de se prever, já que os arestos têm enfraquecido a proteção do corpo social.
E o quadro vai piorar ainda mais se o anteprojeto do Código de Processo Penal, já aprovado no Senado, for aprovado como está na Câmara (PL 8045/2010). Isso porque seu artigo 391 repete a atual redação do 478, com um acréscimo deletério: fica proibido que as partes façam referência aos depoimentos prestados na fase de investigação criminal. A experiência demonstra que, no calor dos fatos, as testemunhas tendem a declararem o que realmente presenciou. Com o passar do tempo, vem o esquecimento, a mudança de endereço para local incerto, a (auto)sugestão e a influência dos envolvidos (acusado, vítima, familiares e advogados). Ora, o depoimento deve ser sopesado pela verossimilhança e não pela fase da persecução penal do Estado em que fora colhido. O novo dispositivo, se aprovado, será mais uma porta larga para impunidade. Em outras palavras, diante de uma prova coesa, verossímil e bem colhida na fase de investigação, basta que as testemunhas se retratem em juízo, mudem de endereço para local incerto ou - numa visão pessimista, mas possível, mormente no que diz respeito às organizações criminosas - que haja seus assassinatos antes do depoimento judicial para que o acusado alcance a impunidade.
O que seria necessário alterar na legislação processual penal em relação ao Júri?
São necessários alguns ajustes. Mencionarei alguns.
Primeiro, eliminar essas excrescências citadas.
Segundo concretizar o princípio da soberania dos veredictos, resguardando-se a imutabilidade do julgamento pelas instâncias superiores. Veja, pois, um contrassenso: apelação contra sentença do Júri - obviamente descoberta da coisa julgada - não admite que o tribunal absolva aquele que foi condenado, mas, estranha e contraditoriamente, isso é permitido em sede de Revisão Criminal que – detalhe – ataca a coisa julgada material. Quer isso dizer que a sentença condenatória do Júri acobertada pela coisa julgada vale menos que aquela despida de cláusula de imutabilidade.
Terceiro, dar cabo a esse simulacro de justiça em que o réu é condenado pela sociedade (democracia direta) e sai caminhando livre, leve e solto, saindo pela mesma porta que jurados e familiares da vítima, gozando de deu direito de apelar em liberdade.
Quarto, ao receber a denúncia e, depois de apresentada a defesa preliminar, deveria a lei prever que o juiz decidisse pela absolvição sumária, impronúncia ou pronúncia do acusado. Em regra, é contraproducente ouvir testemunhas por duas vezes em juízo.
Você seria favorável à ampliação da competência do Tribunal do Júri para outros crimes, como latrocínio e lesão corporal seguida de morte?
Sem dúvida. A leitura de crime doloso contra a vida não pode seguir o método formal, mas o substancial. Cabe, mutatis mutantis, aplicar o critério diferenciador de tipicidade formal e tipicidade material. Assim, nos delitos complexos, em que há ofensa ao direito à vida, é de rigor que sejam submetidos ao julgamento pelo Júri. E mais: penso que isso não reclama alteração legislativa, basta uma revisão de hermenêutica jurídica.
Você é favorável à transmissão do Júri ao vivo por meios de comunicação?
Alguém já disse, muito bem, que o Júri é o julgamento do povo, pelo povo e para o povo. O Tribunal Popular tem por sentido democratizar a justiça criminal. É a invasão da democracia no Judiciário em busca de justiça popular. Logo, a transmissão do Júri ao vivo iria ao encontro dessa finalidade, massificando esse importante mecanismo de julgamento no seio social.
O MP-RJ divulgou, nesta semana, que "a violência doméstica é a principal causa de morte entre mulheres de 16 a 44 anos de idade e mata mais do que câncer e acidentes de trânsito". Em sua prática, você tem observado que os jurados estão mais sensíveis aos crimes de violência doméstica que resultam em julgamentos no Júri?
De fato, a violência de gênero é destacada causa mortificante de mulheres. Para ter uma ideia da triste realidade, um estudo criterioso divulgado recentemente - “Mapa da Violência de 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil” colocou o Brasil na 7ª posição de índice de feminicídios entre 84 países. Conforme a pesquisa, a taxa de homicídio no país ficou em torno de 4,4 vítimas para cada 100 mil mulheres. El Salvador encabeça o ranking, com taxa de 10,3 vítimas para cada 100 mil mulheres. O Brasil aparece atrás apenas de Trinidad e Tobago (7,9), Guatemala (7,9), Rússia (7,1), Colômbia (6,2) e Belize (4,6). Noutra ponta, aparecem Marrocos, Egito, Bahrein, Arábia Saudita e Islândia com taxa zero. Chama atenção o fato de 69% das mulheres-vítimas, atendidas pelo SUS - Sistema Único de Saúde brasileiro, terem sido violentadas no ambiente doméstico. Ou seja, a violência que acontece no lar é praticada por quem, supostamente, deveria amar e proteger a vítima. Da minha experiência no Tribunal do Júri, posso afirmar com segurança que a sociedade, representada pelos jurados, não mais tolera a violência contra a mulher. Tenho observado a afirmação e rigidez na defesa dos valores inerentes ao gênero feminino pelo Conselho de Sentença.
Discute-se se o aumento de pena para os crimes seria a solução mais adequada para o sistema penal brasileiro. É esta a sua opinião?
Nelson Hungria, no século passado, já ensinava que são de duas ordens os fins da pena: retribuir o mal causado pelo infrator e servir de instrumento de prevenção de futura delinquência. Isso significa dizer que pena é intimidação, exemplariedade. Pena que dá pena não é pena. No Brasil, por força do absoluto descaso com a segurança pública e a execução penal por parte dos governantes, temos assistido uma política criminal de progressiva descarcerização. Como não constroem penitenciárias, implementam sucessivos benefícios em favor daquele que quebrou o contrato social. A prisão é um faz-de-conta, a impunidade grassa. É imperioso que o país resolva a falta de segurança pública não pelo abrandamento da legislação penal e de execução penal, como tem feito, justo num momento em que vivemos o cúmulo da violência.
Em sua prática, considera-se normalmente satisfeito com a dosimetria da pena aplicada pelos magistrados?
Não. Como qualquer observador do Código Penal sabe, o preceito secundário dos tipos penais contempla a pena mínima e a máxima. O seu artigo 59 traz todas as diretrizes para a aplicação da pena. Todavia, a rega é que os juízes seguem um padrão bem definido: 1 qualificadora: 12 anos; 2 qualificadoras: 14 anos. Em regra não analisam as peculiaridades dos crimes, mas buscam nivelar todos por baixo. É a política da pena mínima. E assim fazem sob a batuta da jurisprudência dos tribunais.
O Tribunal do Júri pode ser considerado como cláusula pétrea constitucional?
Sim, tanto sob o aspecto formal (arrolado no art. 5º da CF) quanto material (um direito e uma garantia fundamental).
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