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14/08/2018  - Apenas 3 em cada 10 assassinatos de mulheres são legalmente enquadrados como feminicídio no Brasil
 
Joana Suarez - Revista Época

Julho de 2018. As câmeras de segurança conseguem registrar as agressões a partir do carro, na entrada do prédio, quando o casal chegava em casa. Em seguida, é possível ver a advogada Tatiane Spitzner, de 29 anos, apanhando do marido na garagem e no elevador. Em uma sequência de imagens em preto e branco, assiste-se a ela tentar fugir dele, correr, cair no chão, ser encurralada, sufocada. Já no apartamento, ambiente privado, não há filmagens. Vizinhos escutaram os gritos por socorro.

Laudos periciais apontaram que Luís Felipe Manvailer, de 32 anos, esganou a mulher antes que ela caísse — ou fosse jogada — da sacada de sua casa, no quarto andar. O corpo de Spitzner apresentava marcas no pescoço. A investigação ainda apura o que ocorreu nessas últimas cenas, da madrugada do dia 22 de julho, em Guarapuava, região central do Paraná. O marido nega as acusações e diz que a mulher se suicidou.

A Polícia Civil e o Ministério Público já definem a morte de Spitzner como feminicídio e apontam que ela viveu um relacionamento abusivo. A advogada havia comentado com amigos e familiares que o casamento estava mal. Faltava “coragem para encarar o divórcio”, disse em mensagem a uma amiga.

O provável enquadramento do caso como feminicídio é uma exceção à regra geral. Um levantamento de ÉPOCA mostrou que cerca de 70% dos assassinatos de mulheres ocorridos no ano passado estão na vala de crimes letais comuns, sendo investigados sem a qualificadora de gênero, o que agravaria a pena daqueles condenados pelo crime.

Em muitos casos semelhantes ao crime no Paraná, delegados, policiais, promotores, defensores e juízes demonstram não ter critérios específicos para aplicar a lei corretamente.

Em julho de 2015, Robson Bertolez da Silva, de 21 anos, atirou no rosto de Adriane Cristina da Silva, de 16. O relacionamento durara três meses, em meio a brigas, agressões físicas e ameaças. Adriane tinha ido morar com o rapaz em abril nos fundos da casa do avô dele, em Rubiácea, cidade perto de Araçatuba, interior de São Paulo.

Nesse período, Robson Silva quebrou o celular dela duas vezes. As brigas os separavam, mas ele intimidava Adriane, pressionando para que voltasse. Na quarta agressão, a mãe dela, Roseli Ferro Moloni, de 39 anos, retornou em desespero de uma viagem ao Paraná ao receber uma ligação com o aviso de que a filha estava em estado grave no hospital. Após uma discussão que o casal teve sobre relacionamentos antigos, Robson matou a namorada com uma garrucha.

Robson dizia que, se não ficasse com ele, Adriane não seria de mais ninguém. Um dia antes, Robson havia mandado mensagem para Roseli informando que, se a jovem fosse embora da casa dele, a mãe choraria muito. “Ele tirou a vida dela e acabou com a minha. Nunca vou me recuperar”, disse a mãe. Ela doou os órgãos da filha para salvar cinco vidas. Há fotos da menina espalhadas em todos os cantos da casa.

O caso de violência doméstica ocorreu logo após a Lei do Feminicídio (número 13.104), de 9 de março de 2015, entrar em vigor. A investigação da morte de Adriane foi concluída em menos de dois anos, chegando ao júri no ano passado. Era feminicídio, a promotora estava convicta da denúncia. Robson assassinou a adolescente e alegou ciúmes. Na tentativa de reduzir a pena, a defesa do acusado tentou convencer os jurados de que o crime fora cometido em legítima defesa e sob violenta emoção, pois a vítima o teria provocado.

Em 13 de julho do ano passado, o Tribunal do Júri de Araçatuba condenou Robson a 14 anos de prisão por homicídio qualificado por motivo fútil, mas a sentença não cita o feminicídio. “Só pela surra que minha filha levou, a pena foi muito pouca. A Justiça foi cega”, afirmou Roseli.

A promotora Maria Cristina Lenotti Neira encaminhou apelação à Justiça para que a pena aumente em pelo menos dois anos com o reconhecimento da violência doméstica como agravante, mas ainda não há resposta ao recurso. Por ser algo novo, comentou a promotora, a motivação “feminicídio” foi entendida pela juíza como subjetiva. “Mas ele deu um tiro na cabeça dela, os dois moravam juntos, não tem subjetividade nisso”, afirmou Neira.

Em dezembro de 2017, José Ivan Ferreira de Barros, de 27 anos, encontrava-se preso na unidade prisional no município de Arcoverde, sertão de Pernambuco. Cumpria pena de 20 anos pela tentativa de homicídio de uma ex-companheira. O presídio ficava em frente à casa de Edjane da Silva, de 31 anos. Bastava atravessar a rua. Um dia ela foi lá visitar o irmão que estava detido e conheceu Barros. Começaram a namorar. Oito meses depois, na virada de 2017 para 2018, ela levou três tiros de um desconhecido na porta de casa. O filho de 8 anos viu tudo, inclusive quando a mãe falava nervosa ao telefone com Barros, que é acusado de ser o mandante do crime.

“A arma dele foi o telefone”, desabafou a irmã Ejany da Silva. Mesmo preso, ele controlava tudo. Ligava para Edjane, e ela tinha de sair correndo para atender. Ela comentava com as irmãs que não aguentava mais a situação, vivia chorando, mas acabava cedendo para proteger a família. “Ninguém imaginava que uma pessoa de dentro do presídio faria isso”, disse Ejany, enquanto a mãe segurava um quadro com uma montagem das fotos de Edjane e de seus três filhos, de 6, 8 e 16 anos, com a inscrição: “Amor só de mãe”.

Na casinha pequena, em uma rua sem asfalto, as irmãs e a mãe de Edjane, Maria Olizete da Silva, de 65 anos, dizem não conhecer o termo “feminicídio”, mas têm certeza de que a vida dela foi “tirada” por causa do ciúme controlador de Barros. Ela mudou muito depois que começou a namorar com Barros. Maria Olizete perdera outro filho assassinado meses antes, mas não se conformava com a filha ter sido morta por alguém que fingia ser seu companheiro.

Na noite do crime, Barros recebeu no presídio uma foto dela dançando com outro. “Ela foi beber um dia e teve gente que estava fazendo fuxico para ele”, contou a mãe. O então companheiro mandou mensagens de voz ameaçando Edjane antes do assassinato e continua atormentando a família.

O delegado Henrique Paiva, no entanto, concluiu o inquérito um mês após o homicídio, indicando o tráfico de drogas como motivação. Ele acusou Edjane de ser cúmplice do namorado no comércio ilegal de entorpecentes. O Ministério Público também fez a denúncia sem a qualificadora do feminicídio, alegando que a ordem para a execução da vítima foi com intuito de “assegurar a vantagem de outro crime”— Edjane teria feito uma dívida em nome do acusado. A família acredita que Barros a obrigava a ser parceira no crime.

A investigação, segundo o delegado, não conseguiu confirmar a suposta traição. “Consideramos só a questão do tráfico”, afirmou Paiva. O mototaxista acusado de executar a vítima a mando de Barros não foi encontrado pela polícia. Os dois foram denunciados por homicídio qualificado, mas não por feminicídio. Se houvesse a qualificadora de crime de gênero, a pena poderia ser aumentada. A Lei 13.104 prevê ainda que, quando o assassinato se dá na presença de um filho, a pena é aumentada de um terço até a metade.

Em abril de 2008, Vanessa, de 18 anos, bebeu algumas cervejas com uma vizinha no início da noite. Chegou em casa e teve uma conversa definitiva com o companheiro. O relacionamento não estava mais dando certo. Ela informou que voltaria para a casa da mãe assim que o dia amanhecesse. Luiz, de 28, era muito ciumento. Estavam morando juntos havia três anos. Essa já era a segunda vez em que Vanessa tentava se separar dele. Da primeira, ficou três meses afastada, mas Luiz a perseguiu, insistiu para que voltasse e a ameaçou de morte. Por isso ela voltou. Três dias depois, desistiu. Não dava. Iria embora.

Às 5 horas do dia seguinte, ele a acordou perguntando se ela iria mesmo embora. Ela afirmou que sim e pediu que a deixasse dormir um pouco mais. Foi acordada novamente com uma faca no pescoço e o sangue escorrendo. Levou mais duas facadas no braço e, ao tentar gritar, Luiz tapou sua boca. Em seguida ele fugiu. Vanessa sobreviveu.

Dez anos depois, em maio de 2018, Luiz sentava-se no banco dos réus do Tribunal do Júri do Recife, capital pernambucana. A defensora pública iniciou o interrogatório: “No dia do ocorrido (crime), a sua ex-companheira tinha ingerido bebida alcoólica? Como é que ela estava? Ela estava bêbada?”. Ele respondeu que sim. “Sem mais perguntas”, finalizou a defesa.

Em seguida, o promotor começou a falar aos jurados sobre a cultura machista que domina os crimes contra as mulheres. Apontou que as perguntas feitas na instrução processual e no júri eram para saber se a vítima estava bêbada. “Ela estava com a vizinha bebendo e ele não gostou, mas isso não autoriza alguém a esfaquear o outro”, disse. “A história aqui é outra. Ela não queria mais viver com ele por ele ser um homem extremamente ciumento.”

A defensora argumentou ainda que a “briga” daquele dia foi uma exceção, pois o casamento é algo muito complicado, nas palavras dela. “Quem não perde a cabeça? Todo casal tem suas coisas (...) realmente, essa foi uma briga naquele momento, e ele, infelizmente, se excedeu.”

Tratava-se de uma tentativa de homicídio, mas, como o réu já construíra sua vida em outro estado com outra mulher, o julgamento terminou por desclassificar a tentativa para lesão corporal gravíssima, com pena de quatro anos de reclusão a ser cumprida em regime aberto. O promotor citou a Lei do Feminicídio, mas não seria o caso de aplicá-la, já que, aprovada posteriormente, não poderia ter efeito retroativamente.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que a taxa de feminicídio no Brasil é a quinta maior do mundo. São 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres. Uma das razões da criação da Lei 13.104, que traz a qualificadora do feminicídio, é afastar o discurso de que a vítima provocou a própria morte e o homem agiu em defesa da honra. Desde março de 2015, o assassinato de mulheres envolvendo “violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher” passou a ser crime hediondo, com pena de 12 a 30 anos — em um homicídio simples, a pena é de 6 a 20 anos.

Para saber quantos homens foram presos por feminicídio no Brasil, ÉPOCA solicitou a todos os tribunais estaduais a quantidade de condenações por feminicídio — desde o início da lei em 2015 até este ano — e só obteve resposta de nove, que somavam 116 condenados em três anos. A maioria dos estados não realiza a contagem do resultado da sentença. Eles informaram ter 1.797 processos, no total, com a qualificadora de feminicídio. Os processos de homicídios em geral, no Brasil, podem levar mais de oito anos até chegar ao júri.

Morte de mulheres em 2017

Homicídios de mulheres: 3.532

Feminicídios: 943

Taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras

Não há um banco de dados nacional sendo alimentado com a quantidade de crimes classificados como feminicídios. A reportagem procurou todas as secretarias estaduais de Segurança Pública e obteve informações de apenas 13 das 27 unidades, incluindo o Distrito Federal. Nove pastas não retornaram os contatos nem possuem números disponíveis em sites.

Outras cinco secretarias responderam que não fazem a contabilização específica do feminicídio em todo o estado, apenas separam os homicídios com vítimas do sexo feminino. Em São Paulo, a Secretaria de Segurança informou que a contabilização não seria possível porque só tem como saber se há qualificadora no homicídio ao final do inquérito — mas, dessa fase, a pasta também não tinha dados a informar.

A partir das respostas enviadas, ÉPOCA chegou à quantidade de 3.532 homicídios de mulheres e 943 feminicídios registrados pelas polícias no Brasil em 2017. Isso significa que os casos que possuem a qualificadora representam 28,6% do universo de assassinatos.

Os números registrados pelas polícias brasileiras contêm, possivelmente, apenas as situações que envolvem um relacionamento ou ex-companheiro na autoria do crime. No Rio Grande do Sul, por exemplo, entre os feminicídios contabilizados em 2016 pela Secretaria de Segurança Pública, 99% dos autores eram o companheiro, o ex ou algum familiar. Outro exemplo é a resposta da secretaria de Mato Grosso, que informou ter implantado recentemente no sistema um dispositivo para “verificar o grau familiar da vítima e do suspeito, a fim de conseguir precisar os números de feminicídio”. Tal instrumento vai identificar apenas os causados por violência doméstica.

Antes da lei, a desculpa de que o homem matou por amor ou por ciúmes, de que foi um crime passional, diminuía a pena, tirava as qualificadoras do homicídio e até absolvia o réu. “Com a mudança, mesmo que ele tenha matado por ter sido traído, é feminicídio. E a pena é maior”, explicou Marília Montenegro, professora de Direito Penal da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), estudiosa do tema. “Os homens morrem muito mais, mas a gente morre porque a gente é mulher”, afirmou ela.

Doze mulheres são assassinadas por dia no Brasil, conforme o Atlas da violência. Precisaria estar na legislação o agravante de ser morta por ser mulher. “O sujeito mata por achar que tem direito de vida e morte sobre a mulher. O feminicida quer destruir a imagem e a sexualidade dela. Estamos combatendo o padrão moral, que leva à criminalidade”, defendeu a advogada criminal Luiza Eluf, que participou da comissão de reforma do Código Penal com a proposta do feminicídio e sofreu muita resistência.

Faz três anos que a lei está em vigor, mas isso não significa que ela está sendo aplicada como deveria. O assassinato de uma mulher passa por várias instâncias e autoridades, que, se tiverem um olhar machista, não o enquadram como feminicídio. Esse entendimento de que o crime foi cometido por razões de gênero tem de começar com os policiais que investigam, depois os promotores precisam manter ou qualificar a denúncia, em seguida os juízes devem levar para votação dos jurados e esses, por fim, darão a sentença reconhecendo ou não a qualificadora, a depender das narrativas apresentadas no júri.

Estudando violência contra a mulher há 20 anos, Luiza Eluf avalia que as falhas estruturais das polícias e perícias brasileiras impedem que se estudem melhor os detalhes do assassinato. “Temos estatísticas que dizem que 90% dos homicídios não são esclarecidos. A lei não é tão nova assim, mas os policiais ainda não estão preparados para identificar os feminicídios”, considerou a advogada, lembrando que o juiz também é fruto de um padrão de comportamento machista.

“Se o policial buscar desde o início as diferenças de gênero, pode ser que ele encontre provas do feminicídio ou pode ser que ele conclua que o gênero não determinou a morte. Mas o policial terá de aplicar uma série de requisitos, e a gente espera, assim, um inquérito mais bem feito, podendo encontrar outras qualificadoras”, afirmou a socióloga Wânia Pasinato, assessora técnica da ONU Mulheres. Ela trabalhou na elaboração das Diretrizes nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres — Feminicídios, projeto iniciado em junho de 2014.

Nos crimes ocorridos em casa, há muita confissão e testemunhas. No ambiente urbano, quando só se acha o corpo, sem motivação e autoria esclarecidas, a polícia acaba por descartar a qualificadora, e, muitas vezes, os casos não são elucidados. “Se os profissionais não fizerem uma análise diferenciada, não adianta ter a lei, eles não vão aplicar”, afirmou a delegada Renata Cruppi, titular da delegacia especializada em crimes contra mulheres de Diadema, São Paulo. “Temos a terceira melhor lei do mundo, mas somos o quinto país que mais mata”, emendou.

A delegada citou uma ocorrência que chegou registrada como “vítima inconsciente encontrada na rua”. Tinha diversas marcas de golpes de machado num braço e num seio, o cabelo cortado, pulsos e tornozelos trincados, olhos vermelhos, dentes quebrados. Mesmo sem conhecer autoria e motivação, a delegada decidiu começar esse caso pelo feminicídio. A equipe chegou ao autor buscando os locais que a mulher frequentava. Tratava-se de uma pessoa com quem a vítima estava num envolvimento que quis terminar.

“Para caracterizar o desprezo e a discriminação, a investigação é bem mais minuciosa, tenho de buscar no histórico desse homem (autor do crime) se o machismo estava presente”, disse Cruppi. Como muitos casos de feminicídio ainda não chegaram à esfera judicial, por enquanto não há jurisprudência que direcione esse olhar para o fenômeno do crime de gênero. No âmbito policial, porém, isso já podia estar sendo trabalhado. A delegada indicou duas perguntas que os investigadores devem se fazer: “A feminilidade dela foi atacada com mais ênfase do que o resto do corpo?” e “Um homem nesse mesmo cenário teria morrido?”.

O corpo morto de uma mulher pode carregar uma série de sinais do poder do homem sobre ele. Se tem sinais de violência sexual, marcas dirigidas a determinadas partes do corpo, como rosto, seios, órgãos genitais, é uma forma de o assassino mostrar para as outras mulheres que, se elas tiverem o mesmo comportamento, estarão sujeitas a esse tipo de violência. Existem ainda elementos deixados na cena do crime: a posição do corpo, o ambiente, as roupas e peças íntimas rasgadas.

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