César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri em Mato Grosso; ex-presidente da Confraria do Júri.
"Qualquer um de nós pode acordar de manhã, olhar no espelho e dizer ''hoje, eu não vou roubar, estuprar ou fraudar!''. Mas ninguém pode dizer ''hoje, eu não vou matar'', porque qualquer um de nós está sujeito a tirar a vida de alguém... Quem aqui nunca sentiu vontade de matar?”
O debate livre-arbítrio versus determinismo tem sido travado na filosofia desde os tempos de Aristóteles. O pragmatismo sensato do psicólogo e filósofo americano William James pregava: “Meu primeiro ato de livre-arbítrio é acreditar no livre-arbítrio.”
Nessa linha, um ótimo filme dirigido por Steven Spilberg, exibido em 2002, baseado no conto de Philip K. Dick, reporta uma trama de suspense ocorrida entre os anos de 2048 e 2054, na qual o protagonista gerencia um projeto de prevenção de assassinatos. Na ficção científica "Minority Report", John Anderton (Tom Cruise), então chefe de polícia, atua de forma preventiva efetuando a prisão de pessoas antes de praticarem homicídio. Ironicamente, ele próprio passa a ser acusado de que matará alguém, tornando-se então um fugitivo. (Com uma dose de spoiler) Ao final, o projeto é desacreditado e, junto com ele, o determinismo, restabelecendo a ideia de que o ser humano atua na verdade por livre arbítrio.
Somos seres livres e responsáveis por nosso atos. O ser humano é eminentemente gregário e a vida em sociedade gera conflitos interpessoais. Por consequência, é necessário que essa convivência seja minimamente ordenada. E o Direito se apresenta como importante instrumento de ordenação social. A sociedade bem ou mal resulta das deliberações de cada pessoa. Entender o outro como a encarnação do nosso limite é imperativo categórico. Diferente dos animais, que agem por instinto, temos a capacidade de escolhas. Afinal, somos seres racionais.
Dentro do amplo leque de escolhas, sem sombra de dúvida, o ato mais drástico de livre arbítrio é atacar a existência própria ou, pior ainda, de outra pessoa. Na vida, todos enfrentamos dissabores, frustrações, raivas e sentimentos de contrariedade. Todavia, temos que buscar a mitigação, resolução ou enfrentamento dos problemas não por meio de atos violentos senão pelo emprego da razão. A principal arma para a solução de eventuais conflitos interpessoais deve ser a palavra (capacidade de diálogo, convencimento e persuasão), e jamais instrumentos cortantes, perfurantes ou contundentes (violência).
A primeira prova de reconhecimento de dignidade da pessoa humana é a capacidade de responsabilidade por suas escolhas. Animais não detêm responsabilidade moral ou jurídica. As pessoas, sim.
É comum ouvirmos no plenário do Tribunal do Júri, sobretudo durante a sustentação oral da defesa, argumentos como este (típico exemplo de chantagem emocional (1)): "Qualquer um de nós pode acordar de manhã, olhar no espelho e dizer ''hoje, eu não vou roubar, estuprar ou fraudar!''. Mas ninguém pode dizer ''hoje, eu não vou matar'', porque qualquer um de nós está sujeito a tirar a vida de alguém... Quem aqui nunca sentiu vontade de matar?”
Diante dessa retórica, um Promotor de Justiça minimamente perspicaz, instantaneamente, fará uso de aparte-indagação: "E por que não matou, doutor?"
Matar é um desejo que pode - e deve - ser plenamente contido pelo livre arbítrio. A não ser o "matar-para-não-morrer" (legítima defesa), tirar a vida de alguém é um ato pleno de escolha, e não de instinto de conservação.
A vida em sociedade impõe a contenção dos apetites e desejos pessoais. Quem age por instinto é animal irracional. Matar como ato de autodefesa ou sobrevivência (cadeia alimentar) é comum no reino animal. A maioria dos assassinatos é sinônimo de intolerância. Mata-se por raiva, ódio, vingança, vergonha, egoísmo, ciúme, possessão, avareza, inveja, ganância etc.
Ninguém pode mudar o que deseja. Mas qualquer um pode mudar o que faz. Isso o que importa. Entre o desejo e a ação há uma miríade de possibilidades. Vontade de matar? Muitos sentiram, sentem ou sentirão. Matar? Poucos mataram, matam ou matarão. Aí está a linha divisória entre civilização e barbárie.
A vida em sociedade reclama contenção de realização de apetites, impulsos ou vontades. Quem não se contém, não está apto a viver em comunidade. Nisso reside a necessidade de sanção penal, como forma de intimidação, exemplariedade e busca permanente de paz social.
Portanto, até prova em contrário, somos seres livres e responsáveis por nossas escolhas e ações. Somos seres dotados de dignidade humana. Por isso, o ato extremo de matar alguém reclama censura séria, firme e grave, como forma de reafirmação da liberdade (limitada) e de reverência pela vida. E a sanção penal confirmará a dignidade humana de quem matou. Afinal, só os animais irracionais não respondem por seus atos.
Nota:
1 - Em 1998, a famosa terapeuta norte-americana Susan Forward publicou o livro “Emotional Blackmail”, que, naquele mesmo ano, foi traduzido e lançado no Brasil com o título “Chantagem Emocional”. A obra analisa, com rara maestria, uma forma poderosa de manipulação das pessoas por meio do emprego do medo, da obrigação e da culpa. O chantagista emocional articula habilmente as palavras com o objetivo de engaiolar pessoas, que, por sua vez, veem mitigado seu livre arbítrio, tornando-se, assim, presas fáceis para fazerem o que ele quer que façam.