César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”. Ex-presidente da Confraria do Júri
Disse o homem: Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi. O senhor Deus perguntou então à mulher: Que foi que você fez? Respondeu a mulher: A serpente me enganou, e eu comi. Gênesis 3:12-13
Antes, durante e/ou depois de concorrer de qualquer modo para a morte de alguém, o criminoso busca a impunidade. Ele não informa à vítima o local e o horário do ataque. Também não comunica à polícia que alguém será assassinado, nem convida testemunha para acompanhar sua obra macabra. Não! Quer consumar seu desejo assassino, mas, por óbvio, não quer pagar o preço de sua conduta com a privação da liberdade. Ou, em outras palavras mais simples e bem claras, quer mandar a vítima para o cemitério sem ter que ir para a cadeia.
Sua primeira vítima é a pessoa que sofreu o ataque ao seu direito de viver; a segunda é a verdade, que sofre duros golpes de línguas mendazes, própria e/ou alheia ("testemunha de viveiro"); e a terceira pode ser a justiça.
Ao julgar um crime de homicídio, tentado ou consumado, não há lugar para a ingenuidade ou parvoíce. A reconstrução do fato criminoso muito se assemelha a um quebra-cabeça, que, segundo o dicionário Houaiss, "é um jogo que consiste em encaixar peças entre si para formar um todo". O raciocínio lógico é o guia na montagem das peças. Deve-se ter sempre em mente que o Estado chega atrasado para montar o quebra-cabeça da infração penal. A persecução criminal estatal funciona como uma máquina retrospectiva de fatos pretéritos, em que visa apurar a existência e as circunstâncias do crime e as evidências de autoria ou participação.
Vale dizer, em geral, tem por objetivo responder a seis perguntas: o quê (a ação), quem (o agente), quando (o tempo), onde (o lugar), como (o modo) e por quê (o motivo) se deu o fato criminoso.
Como, em regra, o crime de homicídio é executado de forma rápida e evasiva, longe dos olhos de testemunhas, vai-se então montando um quebra-cabeça. Claro que peças poderão faltar, e, não raro, faltam mesmo, sobretudo nos crimes premeditados, planejados ou organizados. Mas o que importa mesmo é saber o que importa. Há que se ter muita atenção para identificar e combater o vírus da desinformação. Sua circulação sem a devida contenção poderá causar o óbito da justiça.
Com frequência, a defesa do criminoso age como um mágico, que busca atrair a atenção do público para o que não tem importância e tirar seu foco do que realmente importa.
Assim, para que não haja impunidade e injustiça, não se pode perder de vista a distinção entre o principal e o acessório, o útil e o inútil, o fundamental e o supérfluo, o joio e o trigo, o fato e a versão, a verdade e a mentira. Há peças, então, que, mesmo ausentes, não prejudicarão a visualização da imagem estabelecida pelo quebra-cabeça montado. A título de ilustração, vale o exemplo de um quebra-cabeça do mapa do Brasil. Mesmo faltando as peças demonstrativas dos Estados de São Paulo, Tocantins, Ceará e Acre, restará claro que se trata do mapa deste país. A lógica humana, que é a rainha das provas, não indicará outra coisa. O julgamento do crime deve seguir essa racionalidade.
A confusão entre o que importa (relevante) e o que desimporta (irrelevante) não interessa à Polícia, ao Ministério Público, ao Judiciário e ao Conselho de Sentença, mas, com certeza, muito interessa ao criminoso e à sua defesa, pois é fonte geradora de dúvida. A desorganização ou a mistura dos dados processuais leva à obscuridade do pensamento. A Psicologia Cognitiva ensina que a mente confusa tende a dizer "não". Quanto mais embaralhada a compreensão sobre o fato, a prova ou a lei, mais fácil será o alcance da impunidade. Isso aumenta a chance de levar qualquer pessoa a cometer erros de julgamento. Afinal, o erro judiciário é consequência direta do erro de entendimento do julgador. Interpreta-se mal o fato, a prova ou a lei e, por isso, equivoca-se no julgamento da causa criminal. A conclusão de um julgador confuso é esta: "estou em dúvida, é possível que o acusado não seja (tão) culpado".
Como a impunidade é o alvo do criminoso, ele aposta na negativa de autoria/participação ou, se não tiver outra saída, na confissão, porém, sempre com o enxerto de falsa justificativa para a prática do fato. Confessa uma reação à suposta provocação/agressão da vítima ou um crime menos grave do que lhe foi imputado (confissão qualificada). Na realidade, ele sofre de verifobia, o medo da verdade, por uma razão muito simples: a mentira poderá livrar-lhe do cárcere. Para tanto, lança mão de uma tática mais velha que andar para frente: a transferência de sua responsabilidade.
O terceiro capítulo do primeiro livro da Bíblia narra a violação da única lei vigente no Éden, qual seja, “não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal”. Todavia, não demorou muito e o mandamento foi violado. Deus, então, cobrou Adão pela infração, que não titubeou em transferir a responsabilidade para Eva, a qual também a jogou sobre a serpente. Desde então, os seres humanos têm aperfeiçoado a arte de culpar os outros.
Como disse Millôr Fernandes, “errar é humano e colocar a culpa nos outros também”. Então, o criminoso se vale da técnica “Homer Simpson”, em que o pitoresco personagem do famoso seriado criado por Matt Groening, no episódio "Thanks God, it''s Doomsday", da 16ª Temporada, afirma isto: “a culpa é minha e eu coloco ela em quem eu quiser!”.
O homicida tenta a todo custo livrar-se solto ou, subsidiariamente, receber uma reprimenda menor que sua culpa (minorantes, desclassificação ou desqualificação do crime). Então, incorpora um mantra em sua mente: “Matei, mas não fui eu”.
Por isso, em sua defesa, o criminoso tentará transferir sua culpa à vítima ou a terceiros na ânsia de emplacar o conhecido in dubio pro reo. Apresentará desculpas e justificativas covardes. A arenga é bem conhecida e cansada: “a vítima era usuária de drogas, pode ter sido algum traficante”; “a vítima estava se relacionando com mulher comprometida, pode ter sido o homem traído”; “a vítima era criminosa, pode ter sido alguma de suas vítimas ou a polícia”; “foi uma limpeza social, pois a vítima era bandida”; “a polícia não investigou direito, havia outras linhas de investigação”; “a promotoria não trabalhou corretamente”; “o juiz errou ao pronunciá-lo para o julgamento popular”; “o tribunal não conhece bem a realidade do caso”; “a família enlutada na ânsia de achar um culpado, escalou a pessoa errada como bode expiatório”; “a vítima se suicidou”; “a testemunha mentiu, pois falou o que não viu”; “a polícia torturou”, “o advogado anterior falhou na defesa; “a defensoria pública, por conta do excesso de serviço, não fez o que deveria ter feito”, “a vítima é quem provocou tudo”; “a polícia perseguiu o acusado em razão de seus maus antecedentes”; “estavam todos embriagados, foi o álcool”; “o perito errou”; “a testemunha narrou falsas memórias”; “cadeia não ressocializa”, “na cadeia, se não matar, morre”; “ele cresceu sem pai”; “se o acusado não fosse pobre, não estaria aqui”; "foi o diabo", "assinou sem ler" etc. Em resumo, são sempre as mesmas palavras que dizem as mesmas mentiras.
Portanto, em sua defesa, o assassino elege um bode expiatório, para que leve ao deserto da impunidade e da injustiça a sua culpa por ter investido contra a vida de alguém. Age para matar a verdade com uma mentira mal ou bem contada. Daí que é preciso muita atenção e bastante cautela para que a justiça não se torne sua terceira vítima mortal.