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29/04/2021  - Necropaís
 
César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri em Mato Grosso. Ex-presidente da Confraria do Júri.

Toda ideia falsa acaba em sangue e esta é a justiça desta terra. Mas é sempre o sangue dos outros, e é esta a injustiça de nossa condição. Albert Camus

Na mitologia grega, Tânato é quem tira a vida das pessoas. É o deus da morte, responsável por levar os finados ao submundo, onde reina Hades, o deus dos mortos.

Da Grécia antiga vem o prefixo necro, cuja etimologia reside em nékros (morto), que significa morte. A verdade factual demonstra o quanto tal prefixo está presente no Brasil, convertendo-o em um necropaís, em que Tânato opera de forma incansável. É uma nação de cadáveres.

Basta ver que o país ocupa o pódio infame dos campeões de homicídios (1). Grande parte dos assassinatos cometidos no globo terrestre se encontra no Brasil. Para se ter uma ideia do caos, só em 2017, segundo o Mapa da Violência, ocorreram cerca de 65 mil assassinatos. O cenário fica ainda pior ao se constatar a inexistência de formulação e, por consequência, execução de políticas públicas aptas ao enfrentamento desse gravíssimo problema. É a naturalização de assassinatos.

Ao que tudo indica, os principais responsáveis pela existência do necropaís são a necropolítica, o necrodireito e a necro-hermenêutica. Estes são pais daquele.

Necrodireito é o direito que mata (2). Não tem compromisso com a fonte de todos os direitos, interesses e deveres humanos: a vida. Advém do Estado, sobretudo em sua função legislativa, que, direta ou indiretamente, desprotege e atenta contra a vida humana (3).

Esse termo foi cunhado por José Ramón Narvaez Hernandez, professor da Universidade Nacional Autônoma do México. Na realidade, ele se inspirou na ideia do filósofo camaronês Achille Mbembe, que a denominou como necropolítica (4). O Poder Público, principalmente pela função executiva, por seus diversos entes, instituições, órgãos e agentes, decide quem vive e quem morre, pela via da ação ou omissão. É a política que discrimina e mata pessoas.

Não bastasse isso, há, na função judiciária, a necro-hermenêutica que é a eleição de interpretação do direito que desvaloriza a vida a favor de quem injustamente a atacou. É o laxismo penal misturado com a síndrome de Pilatos (5). Nas possibilidades quase infinitas de interpretação da norma jurídica, o julgador lança mão de exegese em franco desprezo à vítima, a seus familiares e, principalmente ao direito à vida (6). Não pune o assassino como deveria punir (7). Afinal, como ensina Valério de Oliveira Mazzuoli, professor da Universidade Federal de Mato Grosso, punir quem viola direitos é também um standard de direitos humanos (8).

Nessa linha, faz sentido dizer que a punição séria e grave aos assassinos é necessária para que eles e outros como eles sejam desencorajados de fazer o que fizeram, fazem e farão.

A propósito, há um consenso geral de que a vida é a base estrutural de toda a sociedade e pilar fundamental do ordenamento jurídico. Não depende de criação legislativa, uma vez que o direito positivo não o constitui, mas o declara. Logo, a defesa e proteção da vida humana é o principal fim do Estado e razão de sua existência.

Por isso, o Executivo, Legislativo e Judiciário, através de seus agentes, devem adotar todas as medidas necessárias para assegurarem a defesa e a proteção do direito à vida.

O princípio da primazia da proteção integral da vida, que impõe a filtragem "pro vita", nas ações estatais reclama isto: a) a biopolítica: a política da vida em detrimento da política da morte; b) o biodireito: o direito que protege e defende a vida humana; e c) a bio-hermenêutica: a interpretação das normas do ordenamento jurídico que busca a máxima tutela da vida(9).

Enfim, em todas as esferas do Poder Público, deve-se concretizar todas a ações que garantam a melhor defesa e a melhor proteção do direito à vida, que é o epicentro axiológico do universo jurídico e a razão de todas as coisas.

Assim, qualquer ação ou omissão que não tutele, ou tutele de forma deficiente, a vida humana consistirá em necropolítica, necrodireito ou necro-hermenêutica.

É preciso então transformar o necropaís em um biopaís, com a defesa e a proteção intransigente por parte de todos os entes, instituições, órgãos e agentes públicos. E isso só ocorrerá quando todos, sem exceção, abandonarem ações e omissões que flertam com a necropolítica, o necrodireito e a necro-hermenêutica.

Portanto, para que esse terrível estado de coisas seja alterado é preciso, na linha do pensamento de Ronald Dworkin, saudoso professor da Universidade de Nova York, levar o direito à vida a sério (10). A sociedade brasileira deve exigir que o Estado, por todas as suas frentes, leve a sério o direito de viver que cada uma das pessoas possui. Deve exigir que haja defesa e proteção integral do direito de existir ínsito a todos os seres humanos. É um bom começo para tentar neutralizar a ação de Tânato em terras brasileiras.

Por fim, é importante lembrar as palavras de Albert Camus, na conferência "O Tempo dos Assassinos", em 1949 no Rio de Janeiro: "Toda ideia falsa acaba em sangue e esta é a justiça desta terra. Mas é sempre o sangue dos outros, e é esta a injustiça de nossa condição" (11).

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1 - Basta uma rápida pesquisa no Google para encontrar inúmeros documentos que corroboram essa assertiva.

2 - HERNÁNDEZ, José Ramón Narváez. Necroderecho. Cidade de México: Editorial Libitum, 2007.

3 Exemplo claro de necrodireito é o PL 8045/2010 (Novo Código de Processo Penal), ao formatar o procedimento dos crimes dolosos contra a vida com inúmeros obstáculos à punição de assassinos (cf. “Juricídio” - http://promotordejustica.blogspot.com/2021/04/juricidio-o-juri-no-novo-cpp.html - Acesso 28 abr.2021.

4 - MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

5 - Bíblia, Mateus 27:24.

6- NOVAIS, César Danilo Ribeiro de. Necro-hermenêutica. http://promotordejustica.blogspot.com/2020/07/necro-hermeneutica.html Acesso 28 abr. 2021.

7 - Exemplo claro de necro-hermenêutica é a vedação de recurso do Ministério Público contra absolvições injustas pelo Júri em busca de novo julgamento, bem como a concessão do direito de recorrer em liberdade contra a condenação do Júri.

8 - Cf. aula ministrada no “Minicurso de Controle de Convencionalidade pelo Ministério Público” na Escola Superior do Ministério Público do Paraná, em 28 abr. 2021.

9 - Cf. LOUREIRO, Caio Márcio. O princípio da plenitude da tutela da vida no tribunal do júri. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017.

10 - DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

11 - CAMUS, Albert. O viajante. Rio de Janeiro: Record, 2019.

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