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20/07/2021  - Síndrome dos Macacos Sábios no Júri
 
César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri em Mato Grosso e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”. Ex-presidente da Confraria do Júri.

Mizaru, Kikazaru e Iwazaru formam a conhecida trinca de macacos sábios, arraigada na cultura oriental e popularizada em muitos países. O primeiro cobre os olhos, o segundo tapa os ouvidos e o terceiro silencia a boca com as mãos. Tais gestos aconselham os humanos a evitarem ver, ouvir e falar o mal.

A testemunha de crime, sobretudo de assassinato, parece adotar as posturas relacionadas às advertências dos três macacos sábios. Mas, diferente da essência desse conselho, isso decorre do instinto de conservação, do medo e da sensação de insegurança. “Eu nada vi ou ouvi e, por isso, nada digo”, resumo de seu depoimento. É a síndrome dos macacos sábios.

Há boa dose de razão para tal comportamento. Na verdade, faz silêncio probatório para não se tonar vítima de silêncio tumular, por força de potencial ação vingativa e lutuosa de assassinos somada à desconfiança da eficiência do poder estatal em garantir a sua segurança.

Afinal, na primeira fase da persecução penal, não raro a testemunha coopera para a elucidação do fato delituoso, ocasião em que presta depoimento sincero, porém, para seu espanto e sua indignação, dias depois se depara com o criminoso circulando livremente pelas ruas da cidade. Como se isso não fosse o bastante, ele a ameaça direta ou indiretamente.

Em consequência, durante a instrução processual em juízo ou no plenário do Júri, é comum a testemunha ocular(1) de ataque à vida modificar o depoimento prestado no calor dos fatos na fase da investigação criminal. A razão é simples: quem sobrevive é quem mata. Ela bem sabe do que o homicida é capaz de fazer. Ninguém contou. Ela viu com os próprios olhos ou ouviu com os próprios ouvidos o que de fato ocorreu. Logo presta novo depoimento, em verdadeiro ato de "legítima defesa" de sua vida e das vidas de seus familiares, alterando a versão anterior sobre o crime. É uma estratégia para conviver com a violência em um contexto de impunidade e sem perspectivas de mudanças.

O criminólogo francês Edmond Locard nos legou uma máxima: “o tempo que passa é a verdade que foge”(2). Daí a importância do depoimento em bruto, que é aquele colhido logo após a prática dos fatos e reflete o que de fato a pessoa viu, ouviu, sentiu e tocou. Depois vem a modificação por medo, autossugestão, sugestão de terceiros, indulgência, insegurança, esquecimento etc.

Talvez essa postura seja consequência do laxismo na aplicação da legislação penal e processual penal por parte de alguns membros do Judiciário, além do faz de conta no cumprimento da pena (cardápio de benefícios aos condenados). Ou seja, tal quadro tem forte potencial de causar a perda da confiança das pessoas no Estado, enquanto defensor e protetor dos direitos humanos de vítimas, integrantes de famílias vitimadas e testemunhas.

Oportunas as constatações de Bruno Paes Manso. Primeira: “Para enfrentar os riscos pacificamente e ao mesmo tempo conviver nesse meio, é preciso evitar confrontos com pessoas que matam e aceitar a violência contra os outros com naturalidade, mesmo quando os mortos são amigos próximos”. Segunda: “O mal cotidiano acaba tendo que ser tolerado por causa da lei do silêncio, e com o tempo a indignação, quando não desencadeia um ciclo de vinganças, passa a ser represada de maneira eficiente e se transforma em resignação” (3).

Assim, exigir que a testemunha tenha a coragem e o desprendimento de comparecer no Tribunal do Júri e, diante dos presentes, afirmar que o acusado é o assassino, beira ao sadismo e à irresponsabilidade(4). Por consequência, os atores processuais, para a defesa de suas teses, devem ter muito cuidado e responsabilidade para não colocarem em risco as vidas de outras pessoas (vítimas, testemunhas e informantes)(5).

Portanto, nos casos de apuração de crimes dolosos contra a vida, é necessário compreender todo o contexto gerador da síndrome dos macacos sábios na testemunha. Não há lugar para ingenuidade nem omissão, exceto se o objetivo for a impunidade de assassinos. E, por óbvio, para auxiliar na tomada de decisão em busca de veredictos justos, é imprescindível que o Ministério Público, durante sua sustentação oral, informe os jurados sobre essa síndrome que, frequentemente, acomete testemunha de assassinato.

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1 A vítima também, especialmente na tentativa de feminicídio. Nos casos de ofensas à mulher, muitas vezes, instaura-se o círculo vicioso da violência com três fases (1. aumento da tensão, 2. ato de violência e 3. arrependimento e comportamento carinhoso), conforme descrito pela psicóloga norte-americana Lenore Walker. Os atos do ofensor são tão graves que destroem a autoestima e o amor próprio da vítima, que inclusive passa a sofrer de “síndrome de Estocolmo”.

2 LOCARD, Edmond. Manual de técnica policíaca. Barcelona: José Montesó, 1943.

3 MANSO, Bruno Paes. O homem x. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005, p. 293-294.

4 Logo se vê o quão absurdo é o dispositivo do PL 8045/2010 (NCPP) que veda a utilização da prova testemunhal colhida na fase de investigação criminal. Essa proibição não serve a outra coisa senão à impunidade de assassinos.

5 Daí a importância da “testemunha sem rosto”, que, por razões óbvias, não pode ser exposta em julgamento popular.

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