César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”.
O Tribunal do Júri é mais do que um salão no fórum de uma cidade, consiste em um símbolo, um espaço em que a vida humana deve ser defendida pelo povo com vigor, compromisso existencial e coragem cívica. É a democracia em movimento no Judiciário que gravita ao redor de uma causa sacrossanta, de um direito inviolável.
No Brasil, onde a violência consome ruas, lares, corpos e corações, o Tribunal do Júri se ergue como a última trincheira, a derradeira linha de proteção daquilo que, acima de tudo, deve ser intocável: a vida.
O Brasil é um país que respira paradoxos. É um lugar de belezas naturais exuberantes, de uma cultura vibrante, mas também de uma realidade brutal: índices de homicídios que chocam o mundo e uma sociedade que parece, por vezes, acostumada à dor da perda e ao luto. Nesse cenário, o Tribunal do Júri se revela como o espaço onde a sociedade se reencontra com seu dever mais primordial: a defesa e a proteção da vida.
Imagine o Júri como um tribunal onde não há margem para dúvidas sobre o que está em jogo. A cada julgamento, a vida de uma vítima, irremediavelmente perdida, ecoa em suas paredes. Seu clamor exige justiça, e os olhos dos jurados, de cidadãos comuns, se voltam para a tarefa mais sagrada que lhes foi confiada: decidir, com toda a consciência de seu papel, o caso que alberga crime doloso contra a vida. Eles representam a comunidade, a voz coletiva que, em uma nação de violência crônica, precisa reafirmar o valor da vida.
O Tribunal do Júri é o juiz natural dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII, “d”, CF). Esta afirmação carrega uma responsabilidade imensa, quase divina. Porque o tribunal do povo, como é conhecido, não julga apenas fatos e provas; julga, acima de tudo, o respeito à vida humana. Quando o bisturi da violência corta ou tenta cortar o fio da existência, o Júri é convocado para restaurar o equilíbrio, para gritar ao mundo que a obra maligna não passará em vão.
No Brasil, onde as cicatrizes da impunidade corroem a confiança no Sistema de Justiça, o Júri mantém-se como um dos últimos redutos de esperança. O clamor das famílias, das mães que perderam filhos, dos amigos que choram a partida de entes queridos, ecoa pelos corredores de fóruns abarrotados de burocracia e não raras vezes de indiferença. Cada vida perdida é uma ferida aberta no coração da comunidade, e o Tribunal do Júri é chamado a curar, na medida do possível, essa chaga.
A natureza jurídica do Tribunal do Júri, como juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, possui uma teleologia clara e irrefutável: a tutela jurisdicional penal da vida humana. Cada julgamento é uma reafirmação de que a vida é o bem jurídico supremo, protegido pela Constituição Federal, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e todo o arcabouço legal. Quando os jurados se reúnem para deliberar, eles se tornam guardiões desse princípio.
Entretanto, com mais de 200 anos, o Júri brasileiro enfrenta desafios imensos. A violência endêmica, a necro-hermenêutica, a bandidolatria, a impunidade estrutural e a descrença no sistema judicial são obstáculos que precisam ser vencidos a cada novo julgamento. Mesmo assim, é no Júri que a sociedade encontra um ponto de resistência, valiosa trincheira de luta pela melhor defesa da vida. Ao julgar os crimes mais graves, os dolosos contra a vida, o Tribunal do Júri restabelece a ordem abalada pela brutalidade sanguinária.
No plenário do Júri, a plenitude de defesa garante que o acusado, de viva voz e por seu porta-voz, tenha todas as chances de apresentar sua versão, de se justificar, de ser ouvido. Mas, ao final, são os veredictos soberanos que dão a resposta: um sim ou um não, uma palavra que pode encerrar ou continuar o ciclo de dor e impunidade. O sigilo das votações, como um manto que protege a consciência dos jurados, assegura que suas decisões sejam livres de pressões externas, e, ao mesmo tempo, pesadas pela responsabilidade única que carregam.
E, se hoje, a justiça se mostra menos ineficiente, é porque o Supremo Tribunal Federal tem afirmado que não há mais tempo para complacência. Recente decisão do STF (Tema/RG 1068) reforça a ideia de que a condenação pelo Júri deve ser cumprida de imediato, reconhecendo que a dor da vítima, a angústia da comunidade, não podem esperar por anos de recursos e manobras jurídicas. Não bastasse isso, a Suprema Corte (Tema/RG 1087) garantiu ao Ministério Público a Apelação para combater absolvições injustas, devolvendo a chance de a sociedade tutelar adequadamente o direito de viver que cada ser humano ostenta, em novo julgamento popular.
O Tribunal do Júri é o palco onde a justiça toma forma diante dos olhos da sociedade. Cada julgamento é um rito, uma cerimônia solene em que se decide o destino não apenas do réu, mas sobretudo do próprio valor que damos à vida. Em um país que ainda luta para afirmar a dignidade da existência humana em meio à violência descontrolada, o Tribunal do Júri é um farol de esperança. Ele nos lembra que, mesmo em um cenário de sombras, ainda podemos lutar pela vida — e que, ao final, é a vida que deve vencer.
Cada sentença proferida, cada absolvição ou condenação é mais do que uma decisão jurídica. É uma mensagem para o passado, o presente e o futuro. Quando os jurados falam, eles dizem à comunidade que a vida é inviolável, que o sangue derramado não será ignorado. Eles afirmam, com a força de seus veredictos, que viver em uma sociedade violenta não significa aceitar a violência como inevitável.
O Tribunal da Vida é, portanto, o tribunal de todos nós. Nele, a justiça é feita para lembrar que, em meio ao caos, ainda há ordem; em meio à violência, ainda há paz; em meio à morte, ainda há vida; e em meio à injustiça, ainda há justiça. E que, acima de tudo, há um bem maior, fonte de todos os interesses, direitos e deveres, que deve ser protegido com todas as forças e por todas as pessoas: a vida humana.
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