Como magistrado e professor, ao longo dos últimos anos ao coordenar cursos e ministrar palestras sobre o tema, muitos alunos e ouvintes apresentam dúvidas práticas sobre o depoimento especial e uma delas quase sempre aparece: é possível a tomada do depoimento especial em processos do Tribunal do Júri?
O júri popular tem competência constitucional para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio, aborto e instigação e induzimento ao suicídio). É perfeitamente possível que crimes assim tenham crianças e adolescentes como vítimas ou testemunhas. Exemplo 1: adolescente vítima de homicídio tentado. Exemplo 2: criança que testemunhou o feminicídio praticado pelo pai contra a sua mãe. Assim, em tese, é possível que crianças e adolescentes sejam ouvidos no processo do Tribunal do Júri como vítimas ou testemunhas, o que atrai o procedimento do depoimento especial previsto na Lei nº 13.431/2017.
Ocorre que a possibilidade concreta de oitiva de crianças/adolescentes nesses processos coloca em evidência alguns aparentes conflitos existentes entre dois procedimentos que, à primeira vista, são significativamente diversos: o procedimento do depoimento especial e o procedimento do Tribunal do Júri.
No cerne dos possíveis conflitos havidos entre o depoimento especial e o Tribunal do Júri está a difícil conciliação estrutural entre o rito bifásico do Júri e a regra da irrepetibilidade da oitiva da criança e adolescente vítima ou testemunha. Com efeito, a possibilidade de produção probatória em dois momentos distintos e o caráter solene, público e performático do julgamento em plenário levantam questões complexas: como compatibilizar a liturgia do júri com a necessária proteção da criança/adolescente? É admissível que uma vítima ou testemunha infantil preste depoimento perante os sete jurados leigos? E, principalmente: se já ouvida na primeira fase pode ser novamente inquirida em plenário? Este artigo se propõe a deslindar esses questionamentos.
Regras gerais sobre o Tribunal do Júri
O Tribunal do Júri, inscrito no rol de direitos e garantias fundamentais (artigo 5º, XXXVIII, CF), é mais do que um órgão do Poder Judiciário; é uma expressão da cidadania e da democracia participativa. Com efeito, trata-se de uma instituição do Poder Judiciário que permite a participação popular direta no julgamento de crimes específicos. Ou seja: nele o acusado da prática de um crime é julgado por seus pares, isto é, por pessoas comuns do povo, que atuam como Juízes leigos, chamados de jurados. No Brasil, a competência mínima do Tribunal do Júri é definida na Constituição para julgamento dos crimes dolosos contra a vida (e conexos), o que coloca a instituição no epicentro dos dramas humanos mais intensos e sensíveis.
A Constituição estabelece princípios essenciais que regem o Tribunal do Júri: a plenitude de defesa, que garante ao acusado uma defesa completa e abrangente, que vai além da ampla defesa e permite o uso de argumentos jurídicos, emocionais e persuasivos; o sigilo das votações, que assegura que o voto dos jurados seja secreto, protegendo-os de pressões externas e garantindo a imparcialidade do veredicto; e a soberania dos veredictos, que torna a decisão dos jurados sobre a culpa ou inocência do réu soberana, de modo que, mesmo que haja recurso, o tribunal superior não pode modificar a decisão de mérito do júri; pode apenas determinar um novo julgamento pelo júri popular. Tais princípios conferem uma arquitetura única ao Tribunal do Júri.
No Tribunal do Júri, a atuação do juiz se divide em duas figuras distintas, cada uma com funções específicas: o juiz togado (ou juiz-Presidente), magistrado de carreira, concursado e com formação em direito, e os juízes leigos (os jurados), cidadãos comuns, sem formação jurídica específica, que são selecionados por sorteio para compor o conselho de sentença. O juiz togado não decide sobre a culpa ou inocência do réu na fase de julgamento (essa é a função dos jurados), mas preside o processo e conduz o julgamento no plenário, proferindo a sentença em conformidade com o que foi decidido pelos jurados. Os juízes leigos decidem o mérito, ou seja, eles são os responsáveis por decidir sobre a culpa ou inocência do acusado e a sua decisão, neste ponto, é soberana. Essa divisão de funções é a essência do Tribunal do Júri, que busca conciliar o conhecimento técnico-jurídico com a participação popular na administração da Justiça.
A decisão dos jurados sobre o mérito da causa (absolvição/condenação do réu) é final, não podendo ser substituída por um veredicto de mérito de um tribunal togado. Decorre daí um forte argumento, frequentemente brandido, em favor da imediação: os “juízes de fato” precisariam ter contato direto e sensorial com a prova produzida, especialmente a prova oral, para formar sua íntima convicção. A propósito, a oralidade, a concentração dos atos e a publicidade da sessão em plenário reforçam essa ideia de que a verdade emerge do embate direto e público das narrativas. Em outras palavras, no procedimento do júri, em regra, a prova é produzida em Plenário, na presença dos sete jurados (juízes leigos), em sessão solene, aberta ao público ouvinte, salvo nos casos excepcionais em que o processo tramita em segredo de justiça.
O procedimento do Tribunal do Júri é bifásico. A primeira fase (judicium accusationis) funciona como um filtro processual, sob a condução do juiz togado, que avalia a admissibilidade da acusação. Nesta fase, o processo muito se assemelha ao processo comum ordinário, sendo realizada audiência de instrução na qual a prova oral é produzida perante o magistrado, o promotor, o defensor/advogado, o réu, etc. Se o acusado for pronunciado, o processo avança para a segunda fase (judicium causae), o julgamento em plenário.
Nesta nova fase, testemunhas, vítima e réu são ouvidos novamente, agora perante o Conselho de Sentença, o público e as partes, em um ambiente de alta carga emocional e retórica. Portanto, se houver a pronúncia do réu e o caso for levado ao plenário, haverá duas audiências, uma na primeira fase e outra na segunda fase. Logo, é da essência do procedimento bifásico do júri que haja a repetição dos depoimentos.
Regras gerais sobre o depoimento especial
O depoimento especial não é uma mera adaptação procedimental; é a incorporação de um novo paradigma. Fundamentado na doutrina da proteção integral, com assento constitucional (artigo 227 da Constituição) e em tratados internacionais, ele reconhece a criança e o adolescente como sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento.
Com o depoimento especial, a oitiva deixa de ser um ato puramente jurídico para se tornar um procedimento psicossocial-jurídico, que visa a um duplo objetivo: obter um relato fidedigno (melhoria da qualidade da prova) e proteger a integridade e saúde mental do depoente (proteção contra a revitimização).
A chave para esse sistema é o entrevistador forense. Ele não é um mero tradutor ou repetidor de perguntas. É um técnico que aplica protocolos cientificamente validados, baseados em décadas de pesquisa sobre memória, sugestionabilidade e trauma infantil. A entrevista se inicia com uma fase de narrativa livre, na qual a criança relata o que se recorda sem interrupções, seguida de perguntas abertas e não sugestivas para fins de detalhamento e esclarecimento do relato.
Diferentemente de uma oitiva tradicional, no depoimento especial há a separação física do ato em dois ambientes distintos. A sala de depoimento especial é um espaço neutro, acolhedor e seguro, onde ficam apenas o depoente infantojuvenil e o entrevistador. A sala de audiência (ou de observação) é onde o contraditório e a ampla defesa são exercidos, mas de forma mediada. Nela, o juiz, o promotor de justiça, o defensor/advogado e o réu acompanham tudo por videoconferência, em tempo real (in real time).
Após o livre relato da vítima ou testemunha, é possível que as partes façam questionamentos ao depoente. As perguntas da acusação e da defesa são dirigidas ao magistrado, que atua como um primeiro filtro de legalidade e pertinência, e, sendo deferidas, são repassadas ao entrevistador. Este, por sua vez, tem o dever técnico de adaptar a pergunta à capacidade de compreensão do infante, expurgando elementos indutivos ou inadequados. O contraditório é, assim, preservado, mas adaptado à vulnerabilidade do depoente, em um equilíbrio que prestigia tanto a busca da verdade quanto a dignidade humana.
Regra da irrepetibilidade do depoimento especial e procedimento bifásico do Tribunal do Júri: como compatibilizar?
Uma das faces mais cruéis da violência institucional é a repetição desnecessária de procedimentos. Submeter uma criança ou adolescente a sucessivas inquirições sobre um evento violento é forçá-la a reviver indefinidamente o trauma, gerando ansiedade, estresse e podendo contaminar a própria qualidade da memória. Ciente disso, o artigo 11, caput, da Lei nº 13.431/2017 elegeu a oitiva única como o cenário ideal e a regra a ser perseguida: “o depoimento especial será realizado, sempre que possível, uma única vez”.
Assim sendo, como conciliar essa regra de um único depoimento especial ao procedimento bifásico do Júri, onde por essência é possível que haja a repetição de oitivas (um na primeira fase, outra na segunda fase)? Para enfrentamento dessa questão, é possível vislumbrar três diferentes cenários:
a) oitiva na primeira fase e transmissão em Plenário (a solução preferencial): se a criança já foi ouvida na primeira fase, em depoimento especial produzido sob o contraditório, a solução que melhor compatibiliza todos os princípios é a transmissão da gravação audiovisual aos jurados em plenário (artigo 12, VI, da lei), dispensando-se uma nova oitiva na segunda fase. Esta prática não viola a soberania dos veredictos nem a imediação. Pelo contrário, pode até qualificá-la.
Os jurados terão acesso a um relato colhido em ambiente controlado, por um técnico, livre das contaminações e do estresse do Plenário. Poderão analisar a narrativa, as hesitações e as emoções da criança de forma mais serena. Inclusive, a prática de transmissão do depoimento realizado na primeira fase tornou-se cada vez mais usual após a Covid-19. Naturalmente, por se tratar de ato sigiloso (artigo 12, §6º), a exibição do vídeo demanda o esvaziamento do plenário, com a permanência apenas dos atores processuais indispensáveis.
b) oitiva apenas na segunda fase: se a criança não foi ouvida na primeira fase, é plenamente possível que o depoimento especial ocorra, pela primeira vez, durante a instrução em plenário, observando-se as adaptações que veremos a seguir.
c) o pedido de repetição da oitiva em plenário: este é o cenário de maior complexidade: a criança já foi ouvida na primeira fase e há pedido de alguma das partes pleiteando por sua nova oitiva na segunda fase. A repetição da oitiva, como visto, em regra, é vedada. A exceção, restritíssima, está no artigo 11, §2º da lei, que exige a cumulação de dois requisitos: decisão judicial que justifique a imprescindibilidade da nova oitiva; e a concordância da vítima ou testemunha (ou de seu representante legal).
A análise da imprescindibilidade da nova oitiva deve ser rigorosa. Não basta a alegação genérica de “plenitude de defesa” ou que “os jurados precisam ver a reação da criança”. Isso seria transformar a exceção em regra, aniquilando a proteção legal. Entendemos que a imprescindibilidade deve se basear em fatos novos e concretos, surgidos após a primeira oitiva, que tornem o novo depoimento o único meio de sanar uma dúvida crucial para o deslinde da causa. O exemplo da carta de retratação, surgida entre a pronúncia e o julgamento em plenário, ilustra bem uma hipótese de real imprescindibilidade.
Uma vez que o juiz, em decisão fundamentada, reconheça essa excepcionalíssima necessidade, passa-se ao segundo requisito: o consentimento. Este não é um ato formal. A criança ou o adolescente, por meio de seu representante legal e com o auxílio de um profissional da equipe técnica, deve ser esclarecido sobre o que significa prestar um novo depoimento, para então manifestar sua vontade livre e informada. Se houver recusa, o ato não se realizará, ainda que o juiz o considere imprescindível. A autonomia da vontade da vítima, neste ponto, prevalece como barreira intransponível à revitimização.
Como acontece, na prática, o depoimento especial na segunda fase do rito do júri?
Nas hipóteses em que a oitiva ocorrer na segunda fase do júri, seja pela primeira vez, seja excepcionalmente pela segunda (por aplicação do artigo 11, §2º, da lei), algumas cautelas e adaptações são imperativas para garantir a proteção do depoente:
a) local da oitiva: a criança não é levada ao plenário; ela permanece na sala de depoimento especial, com o entrevistador. O Plenário do Júri faz as vezes da “sala de observação”, recebendo a transmissão em tempo real via videoconferência;
b) controle de acesso: no momento em que a criança presta o depoimento especial, o plenário deve ser esvaziado, com a retirada do público. A publicidade, neste caso, cede espaço à proteção da intimidade e à vedação da exposição da criança, tendo em vista que o depoimento especial tramita em segredo de justiça (artigo 12, §6º, da lei);
c) o papel do juiz-presidente: além de presidir os trabalhos, ele deve ser o guardião da proteção da criança, indeferindo perguntas não apenas impertinentes, mas também aquelas formuladas de modo a constranger, induzir ou revitimizar o depoente;
d) a participação dos jurados: os jurados, como juízes de fato, assistem à transmissão e têm o direito de formular perguntas para esclarecer pontos duvidosos (artigo 474, § 2°, do CPP). Contudo, seus questionamentos seguirão o fluxo de mediação: o jurado dirige a pergunta ao juiz-presidente, que a avalia e, se a deferir, a repassa ao entrevistador, que, por fim, a adapta e a apresenta à criança; e
e) preparação e informação: a equipe técnica deve preparar a criança, explicando quem são os jurados e por que eles estarão assistindo, para reduzir a ansiedade e dar sentido àquele procedimento.
À vista dessas adaptações, é forçoso concluir que a aparente antinomia entre o rito do Júri e o depoimento especial se resolve não pela supressão de um em detrimento do outro, mas por uma sofisticada e necessária harmonização sistêmica. A justiça feita no Tribunal do Júri não pode, sob o pretexto de sua soberania, atropelar a dignidade de uma criança. A solução reside na inteligência adaptativa do processo penal, utilizando a tecnologia e as balizas protetivas da Lei nº 13.431/2017 para garantir que os jurados tenham acesso a uma prova oral qualificada, sem que isso custe à criança um novo trauma.
A repetição do depoimento deve ser tratada com a excepcionalidade que a lei lhe confere, como uma medida de ultima ratio, submetida a um controle judicial rigoroso e, acima de tudo, ao consentimento soberano daquele que o sistema tem o dever precípuo de proteger: a criança.
................... Heitor Moreira de Oliveira é juiz de Direito da Comarca de São Bernardo do Campo (SP). Presidente do Foeji (Fórum Estadual das Juízas e dos Juízes da Infância e Juventude) de SP. Juiz integrante do Foninj (Fórum Nacional da Infância e da Juventude). Doutorando em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (Univem) e graduado em Direito pela UFG (Universidade Federal de Goiás), tendo realizado Programa de Intercâmbio Acadêmico Internacional (com bolsa) na Universidade de Coimbra, Portugal. É Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera — Uniderp e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes. Juiz colaborador da EPM (Escola Paulista da Magistratura). Membro do Fonajup (Fórum Nacional da Justiça Protetiva) e do IBDCRIA (Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente).