Confraria do Júri
A Associação dos Promotores do Júri divulga o pronunciamento do promotor Antonio Sergio Cordeiro Piedade, presidente da Confraria, listando para a sub-relatora do Projeto de Lei do Senado nº 156/2009, senadora Serys Slhessarenko (PT-MT), os itens falhos da proposta que pretende reformar o Código de Processo Penal (CPP).
Evento: Debate sobre a reforma do Código de Processo Penal, realizado pela Procuradoria Geral de Justiça de Mato Grosso, em Cuiabá, com apoio da Confraria do Júri.
Data: 11/09/2009
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Promotor Antonio Sergio relata os itens elencados pela Confraria do Júri sobre o PLS 156/2009
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Excelentíssima Senadora da República, Serys (Slhessarenko). Tenho uma satisfação muito grande, uma honra, em recebê-la no Ministério Público do nosso Estado de Mato Grosso. Eu sempre tenho dito, senadora, que estamos em uma fase da humanidade em que precisamos de pessoas de bem fazendo o bem. Nós precisamos transformar esta realidade que aí está. E tenha a certeza que Vossa Excelência é uma parlamentar que integra essas fileiras das pessoas de bem, que fazem o bem e que têm o propósito muito claro de utilizar o mandato parlamentar para a melhoria da qualidade de vida, a melhoria da relação entre as pessoas.
Minha colega Lindinalva (Corrêa) ; doutor Marcelo (Ferra de Carvalho) , procurador-geral; doutor José Antonio (Borges), presidente da Fundação Escola; doutor José Pedro Taques (procurador da República) , Doutor Márcio Dorileo (defensor público) , Doutor (Ulisses) Rabaneda (advogado) , em nome de quem eu cumprimento a todas as autoridades juízes, defensores públicos, procuradores do Estado, a todos os operadores do Direito.
A nossa intenção, senadora, é fazer uma análise objetiva de alguns pontos do projeto e depois abrir para que os colegas façam sugestões pontuais com relação a esse PLS, número 156. A primeira coisa que eu gostaria de dizer a Vossa Excelência é que eu percebo no Código de Processo Penal (que teve como presidente da comissão o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Hamildo Carvalhido, um homem egresso do Ministério Público do Rio de Janeiro, foi procurador geral de Justiça, tem uma formação jurídica diferenciada) uma tendência a um garantismo negativo, com a preocupação – e é necessário que assim seja – com as garantias constitucionais e com eventuais excessos do Estado contra o cidadão.
Mas nós precisamos também analisar a proporcionalidade enquanto proibição de proteção deficiente, que é o garantismo positivo. E levantar a bandeira de alguns valores importantes: o valor da segurança pública, o valor da justiça. Eu vejo a vítima, infelizmente, como uma figura esquecida do processo penal brasileiro. Eu vejo mulheres que muitas vezes são vítimas de crimes horrendos, crimes hediondos, sobretudo os crimes contra a liberdade sexual que deixam seqüelas irreparáveis pelo resto da vida e nós não temos infelizmente cobertura normativa para darmos o atendimento a essas mulheres e nós não temos políticas públicas para darmos condições de atendimento a essas mulheres.
Nós precisamos de uma ideologia dentro dessa concepção da proporcionalidade também da proibição da proteção deficiente, que é o garantismo positivo.
Dentro dessa perspectiva, senadora, eu faço aqui uma crítica construtiva no sentido do prazo que foi estabelecido para a conclusão do inquérito policial do réu preso. Nós tivemos um aumento de 30 para 90 dias do inquérito policial de réu solto e foi mantido dez dias para o inquérito policial de réu preso. O ideal seria que nós adotássemos a mesma postura da Lei de Drogas, ou seja, dando à autoridade policial o prazo de 30 dias para a investigação dos inquéritos policiais de réu preso, para que possamos cobrar qualidade desses inquéritos, para que a autoridade policial tenha tempo de colher as provas adequadas, de forma razoável, apurar o fato em toda a sua extensão.
Uma segunda situação, senadora, é em relação ao artigo 165 deste projeto de lei do Senado que, na minha humilde análise, cria uma desconfiança inaceitável na polícia. E nós temos aqui delegados de polícia, delegadas de polícia, extremamente comprometidos e comprometidas, valorosos, conhecemos a qualidade do trabalho. O artigo 165 estabelece o seguinte: “O juiz formará livremente o seu convencimento com base nas provas submetidas ao contraditório judicial indicando na fundamentação os elementos utilizados e os critérios adotados”. Ou seja, a prova do inquérito policial, de acordo com o artigo 165, serviria exclusivamente para formar a opinio delictus do titular da ação penal, que é o Ministério Público. Ela serviria de base para o oferecimento da ação penal, para oferecimento da denúncia, e não serviria para que o juiz, com base em seu livre convencimento motivado, fizesse uma análise de todo conjunto probatório que está nos autos.
Uma prova, colhida na polícia, que esteja em sintonia com todo o conjunto probatório, não há razão para nós a desprezarmos. E eu digo a Vossa Excelência: imagine uma situação em que nós temos um indivíduo que testemunha um fato horrendo, um fato hediondo, de ampla repercussão, e - na polícia - presta esta declaração minuciosa, detalhada, pormenorizada, na presença de seu advogado (o Estatuto da OAB preconiza que o advogado tem acesso ao inquérito policial e pode acompanhar o seu cliente), e essa testemunha muitas vezes é intimidada, é corrompida, há o risco do perecimento da prova... Eu verifico, senadora, como promotor do Tribunal do Júri da capital, que nós temos hoje alguns crimes que acontecem nos bairros de Cuiabá, onde o sujeito está estabelecido como açougueiro, quitandeiro, viu o fato, presta o depoimento minucioso, e, para conseguir trazer este sujeito ao juízo, é uma tarefa dificílima: só vem conduzido coercitivamente. Infelizmente, muda a sua versão e nós não conseguimos convalidar esta prova.
O que nós queremos dizer? Não que não seja necessária a prova colhida sob o contraditório e ampla defesa, mas nós não podemos desprezar o trabalho feito na polícia. O juiz tem que formar o seu convencimento com todo o quadro comprobatório, não com o quadro comprobatório parcial.
Um outro aspecto relacionado à prova (conforme o PLS) é de que o juiz não pode fundamentar a sua decisão com base em indícios. Senadora, a rainha das provas é a lógica humana. A prova indiciária é uma prova por indução, é uma prova indireta. Por que o magistrado, ao analisar os autos do processo, não pode formar o seu convencimento com base em um indício consistente, razoável, adequado e depois fundamentar a sua decisão judicial? De acordo com esta sistemática no tocante às provas, teríamos uma inaceitável desconfiança na polícia, não aceitando a prova colhida no inquérito policial e a impossibilidade de uma condenação com base na prova indiciária. A prova indiciária é uma espécie de prova que tem que ser valorizada. Obviamente que o juiz deve fundamentar a sua decisão, mas deve fazer uma análise também dos indícios.
Quanto à prova do inquérito policial, há também o art. 380, inciso III, do projeto, que é relacionado aos debates do plenário do júri. De acordo com o projeto, as partes não podem fazer a referência ao depoimento prestado na fase de investigação criminal. Para o jurado, que é o juiz do fato, que vai julgar aquela situação colocada em julgamento, o promotor de Justiça não pode fazer a leitura de um depoimento colhido na fase policial, sob pena de nulidade do julgamento. Isso é muito grave!
E também, dentro dos aspectos dos debates, inclusive foi comentado pela nova reforma do Código de Processo Penal, há a questão do argumento de autoridade no tocante à sentença de pronúncia. O promotor e a defesa não podem se referir à pronúncia, que é o encerramento da primeira fase. Então, fez referência à pronúncia ou fez referência à prova colhida na fase do inquérito policial, nulidade do julgamento.
O artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, prevê o direito à liberdade de expressão. Eu digo à Vossa Excelência o seguinte: o júri vigora sob o princípio da oralidade. É o debate dialético entre as partes. Suprimir, retirar dos jurados o conhecimento acerca da pronúncia, quando ele recebe a cópia dessa pronúncia? Por que as partes não podem fazer referência? Se o defensor tem algo que vem ao encontro da pretensão de seu cliente, por que não pode fazer referência à pronúncia? Se o Ministério Público tem, na pronúncia, algo que vem ao encontro dos anseios da sociedade, por que não pode fazer referência à pronúncia, sendo parte do processo e uma prova lícita? A nossa proposta aqui é com relação aos debates no plenário do Júri: que não se viole o direito à liberdade de expressão.
Promotora Lindinalva Corrêa – Me dá um aparte?
Promotor Antonio Sergio – Pois não!
Promotora Lindinalva Correa – Posso dizer que este dispositivo que o colega acaba de dizer é antagônico a outro artigo que cria justamente o juiz das garantias. Ele não permite que se use esse depoimento ainda que seja produzido perante o juiz das garantias, que é aquele que o projeto prevê como responsável para acompanhar a parte do inquérito antes do oferecimento da denúncia. Ele cria uma figura de um juiz, um juiz de direito, que na verdade pode atuar apenas na fase do inquérito e depois, tudo que ele fez, não pode ser aproveitado pelo segundo julgador, que seria o posterior ao oferecimento da denúncia, o que é um paradoxo nos termos do próprio projeto.
Promotor Antonio Sergio – Eu vejo, senadora, dentro dessa questão das provas, que o artigo 165 – eu não tenho dúvida – levará a absolvições absurdas. Nós temos que analisar as questões dentro de um contexto. Nos delitos de menor potencial ofensivo, nós trabalhamos com a justiça consensual: transação penal, reparação civil dos danos. Médio potencial ofensivo? Há o devido processo legal, contraditório e ampla defesa, todas as garantias constitucionais.
Mas, quando nós trabalhamos com organizações criminosas, com o crime organizado, nós temos que enfrentar uma nova modalidade de crimes que está vindo muitas vezes do próprio aparato do Estado, o que é uma afronta ao próprio Estado democrático de direito. Para tanto, é necessário mitigar as garantias individuais. E eu digo a Vossa Excelência o seguinte: Não há como se utilizar as garantias individuais como escudo protetivo para a prática nociva de licitudes. O artigo 165, se prosperar no tocante à impossibilidade do juiz fundamentar a sua decisão na prova colhida no inquérito policial, não que seja uma prova isolada, mas uma prova dentro do contexto, e com base em indícios, eu não tenho dúvidas que nós teremos absolvições absurdas, sobretudo e notadamente no tocante a crimes perpetrados por membros de organizações criminosas.
Um outro aspecto, senadora, que nós colocamos a Vossa Excelência é com relação aos crimes patrimoniais. Hoje há uma proposta de tornar objeto de ação penal pública condicionada à representação os crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça à pessoa. (...) Se o sujeito for surpreendido furtando uma residência, se a vítima não for localizada para dar a condição de procedibilidade com a representação, não há como se efetuar a prisão em flagrante desse indivíduo.
Promotora Lindinalva Corrêa – Esta proposta é realmente um absurdo. Colocar a vítima frente a frente com o abusador do seu patrimônio, principalmente nos casos envolvendo crianças, adolescentes, idosos. Como eles, vivendo na mesma casa, vão ser obrigados a representar? Principalmente os idosos, onde há todo tipo de estelionato nessa área. Isso vai trazer mais problemas para eles, vai trazer mais pressão, muitas vezes até agressões físicas e outras mazelas.
Procurador Paulo Prado – Dispara o alarme, a polícia está por perto, está vendo o inimigo sair com o caminhão recolhendo tudo que tem na casa do outro e não pode prender?
Promotora Lindinalva Corrêa – Não pode prender, porque ninguém representou...
Promotor Antonio Sergio – Outro aspecto que gostaria de salientar em relação ao Tribunal do Júri, senadora, é o aumento de sete para oito jurados e o empate absolve o réu. Doutor Márcio Dorileo (defensor público) está aqui, militante do Tribunal do Júri, doutor Ulisses Rabaneda (advogado)... são profissionais talentosos. Nós temos hoje um sistema que funciona: nós temos sete jurados, um número ímpar. Aumentar para oito jurados e colocando o empate em favor do réu, não vejo razoabilidade nesse aumento.
Outro aspecto relacionado ao Tribunal do Júri é com relação à quesitação, a concentração das teses defensivas no tocante à excludente de licitude, de culpabilidade, em um quesito único: “O jurado absolve o acusado?” É um problema muito sério. Imagine o seguinte: no plenário do júri, o defensor suscita a tese de legítima defesa própria, legítima defesa putativa e inexigibilidade de conduta diversa. O sujeito é absolvido. O jurado absolve o acusado? Sim, por quatro a três. Como o Ministério Público vai manejar o recurso? Rebatendo qual das teses? O que fica claro é o seguinte: No sistema americano, há o debate entre os jurados. Eles discutem e depois chegam a um consenso. Já no nosso sistema vigora o sigilo das votações. O jurado fica incomunicável. Ele pode falar de futebol, de literatura, de música e de poesia, mas ele não pode falar sobre o caso concreto. Então isso é algo que foi contemplado pela reforma, a concentração em um quesito único, e também contemplado neste PLS, o quesito genérico para as teses defensivas. Eu entendo que o sistema anterior, ainda que suscitasse o debate em torno de algumas questões técnicas que para o jurado é algo complexo, mas havendo um promotor de justiça e havendo um defensor que tenham conhecimento técnico, eles conseguem esclarecer, conseguem pontuar para os jurados acerca da matéria. Agora, esta concentração em um quesito único, eu não vejo como algo positivo para o Tribunal do Júri.
Outra questão, eu prometo que farei mais duas sugestões e depois já abro para os colegas, é algo que suscita o debate candente no meio jurídico: O Ministério Público pode investigar, não pode investigar? Temos vários argumentos. É bom para a sociedade um Ministério Público forte, com credibilidade social, respeitado, fortalecendo o Estado Democrático de Direito e investigando, sobretudo quando existem organizações criminosas? E quando eu digo investigando, senadora, é em sintonia com a autoridade policial, com o delegado de polícia. Nós temos que deixar de lado as questões menores e as vaidades e avançar. A discussão não pode ser corporativa. Não é uma discussão de espaço. A discussão precisa ter como pano de fundo a sociedade, destinatária de tudo que nós estamos fazendo aqui.
Eu penso o seguinte: O Ministério Público na investigação criminal é bom para a sociedade organizada ou não? Penso que é bom, que é positivo. Agora, é necessária uma regulamentação. É necessário que o legislador, nesse aspecto, seja claro e enfrente esta questão dando ao Ministério Público a possibilidade de investigar, ainda que estabeleça os contornos dessa investigação: quando pode investigar, atuações que pode investigar. Nós sabemos que a nossa independência funcional, nossa autonomia, tem que ser usada a favor da sociedade. Hoje, o promotor de Justiça e o procurador da República detêm uma autonomia que pode e têm condições e têm obrigação e dever de ofício de enfrentar o crime organização, as organizações criminosas e toda uma série de mazelas que vitimam a sociedade. Tenho muito claro o princípio da universalização das investigações. Hoje, as comissões parlamentares de inquérito investigam muito e investigam com qualidade. Muitas questões importantes do país passaram pelo crivo das CPIs. O Coaf investiga, a Receita Federal investiga... A concentração, o monopólio da investigação nas mãos de uma só autoridade, de uma só instituição, será que isso é bom para a democracia? Nós precisamos que este PLS dê ao Ministério Público este poder de investigação de forma objetiva, ainda que remeta a uma legislação a maneira de como isso vai ser regulamentado.
Para encerrar a minha intervenção, acho que a Lindinalva é a pessoa mais habilitada para falar desse assunto, mas eu gostaria de também reiterar este clamor no tocante à Lei Maria da Penha, que é uma lei avançada, é uma lei importante. Eu vi vários artigos questionando o princípio da igualdade com o advento da Lei Maria da Penha. Eu digo a Vossa Excelência o seguinte: o princípio da igualdade não pode ser uma ferramenta de injustiça, porque a cada 15 segundos neste país uma mulher é agredida. Porque de cada três mulheres, uma já sofreu violência no interior de seu próprio lar. Nós precisamos enfrentar a realidade de frente. Se nós não colocarmos este novo Código de Processo Penal dentro de um sistema, corremos o seguinte risco: a revogação, ainda que tácita, do artigo 48, da Lei Maria da Penha. O artigo 48 diz o seguinte: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, não se aplica a Lei 9.099”. Nós voltaremos àquele modelo anterior: sujeito espancou a mulher, cesta básica, transação penal e resolvido o problema. Reparação civil dos danos e resolvido o problema. A ação hoje é pública e incondicionada, e tenho certeza que o STJ vai consolidar a jurisprudência nesse sentido. Nós voltaremos à realidade da ação penal pública condicionada à representação da mulher, que tem seu algoz dentro de casa e diz: se você não for lar retirar, entre aspas, a queixa, você sabe a conseqüência. E mais: a decretação de prisões cautelares, nós teremos dificuldade. E por fim: teremos dificuldade em eventual prisão em flagrante. Nós sabemos que, nos delitos de baixo potencial ofensivo, o indivíduo se livra solto. E se cometeu uma lesão corporal ou ameaça, e não há o respeito ao artigo 41 (da Lei Maria da Penha), vai para a regra geral e se livre solto e não há a prisão em flagrante. No tocante à mulher, ao idoso, à criança e ao adolescente, nós precisamos de um tratamento, de um regime jurídico diferenciado, dentro de uma estrutura, sob pena de nós cairmos em uma profunda injustiça.
O que eu tinha para externar a Vossa Excelência são essas questões. Eu acho que nós temos que, sem nenhum protocolo, abrir a palavra aos colegas, para que a gente faça um debate bastante profícuo. Obrigado, senadora.
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Debate sobre o PLS 156/2009 foi coordenado pelos promotores Lindinalva Correa e Antonio Sergio.
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