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02/09/2019  - A vinculação do poder de clemência no Tribunal do Júri
 
Rogério Filippetto, doutor em Direito e mestre Ciências Penais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais; professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais ; e Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Artigo veiculado no site Conjur

A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal analisa a possibilidade de absolvição por clemência no Tribunal do Júri. A indagação que se põe é se haveria compatibilidade entre a afirmação de autoria e materialidade feita pelos jurados, sendo que a seguir também se acata o quesito genérico da absolvição.

O voto do Min. Marco Aurélio, iniciando o julgamento, está no sentido de que o quesito versado no dispositivo tem natureza genérica, sem compromisso com a prova obtida no processo. Sustenta ele, o quesito genérico da absolvição decorre da essência do júri, segundo a qual o jurado pode absolver o réu com base na livre convicção e independentemente das teses veiculadas, considerados elementos não jurídicos e extraprocessuais. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do Ministro Luiz Fux (Informativo 947/STF).

Essa orientação inicial, embora guarde a simpatia de teses democráticas que legitimam a participação popular no Poder Judiciário, quando exercem diretamente o poder, pode não se harmonizar com a necessária existência de controles, o que é característica da sistemática constitucional e também do Processo Penal. É que a concentração de poder absolutório sem o compromisso da respectiva justificativa pode sugerir a construção de abusos e arbitrariedades.

De pronto, já é preciso dizer não haver contrariedade entre os quesitos, isto é, admite-se que os jurados reconheçam a possibilidade de autoria e materialidade, para depois, por outra motivação qualquer, exercerem a clemência em quesito genérico que pode acatar tese exercitada pela Defesa, ou não. Por outro lado, essa conclusão há de guardar alguma consonância com o que se pode extrair dos autos, sob pena de se contrariar a prova ali contida. Esse dever de atinência não fica afastado pelo respeito ao que soberanamente o povo decide.

A partir de um cotejo raso, até causaria perplexidade o reconhecimento de autoria e materialidade, para logo em seguida absolver-se o réu. Todavia, é de se considerar a modificação da sistemática da votação dos quesitos, que agora concentra numa única indagação as teses defensivas. Então, a priori, os jurados podem sim reconhecer autoria e materialidade, para logo depois absolverem, assimilando uma ou várias teses de defesa, ou até, motivo não expressamente indicado. Não há, por essa razão, de se falar em nulidade na quesitação.

Ao responderem positivamente os primeiros quesitos, os jurados refutam a tese da defesa dirigida à inocência ou à inexistência de crime. Daí se retira que a absolvição só pode ter tido fundamento no sentimento de clemência, na vontade dos jurados de perdoar o apelado. Tal possibilidade se harmoniza com a soberania dos julgamentos feitos pelo Tribunal do Júri, alicerçando-se, ainda, na possibilidade de a essa conclusão chegarem os jurados, pelo exercício de sua íntima convicção. Isso os autoriza a absolver até mesmo por razão não invocada no exercício da defesa técnica ou da autodefesa.

Fixa-se, assim, que para que a decisão se sustente, deve harmonizar-se com a prova que conduza ao reconhecimento da possibilidade da clemência. Então, há de se respeitar a individualidade dos casos, perquirindo por um exame do conteúdo probatório para verificar sua compatibilidade com a conclusão alcançada pelos jurados. Isso se dá não somente pela plausibilidade das teses defensivas, mas também com fundamentos que poderiam lastrear, por razões humanitárias, possível sentimento de piedade e solidariedade humana.

Não se opõe a esse raciocínio o argumento de que poderiam existir versões, como pretenso álibi que escoraria a decisão dos jurados, pois não se está a discutir a admissibilidade de teses e sim a motivação de perdoar por compadecimento. Isso porque a íntima convicção orientadora do Tribunal do Júri não permite que se saiba, com precisão, o que levou o colegiado de primeiro grau a decidir pela absolvição, o que somente encontra justificação na possibilidade de clemência. Mas, ad argumentandum tantum, se a decisão teve lastro em versão contida nos autos, mas não exposta pela defesa técnica, é melhor mesmo que o julgamento seja submetido a novo crivo do Tribunal do Júri, em nome da segurança jurídica que deve emanar da soberania dos veredictos. De fato, a manifestação de um sentimento de piedade que objetivamente não se justifica, merece ser confirmado por outro colegiado, para que se mostre relevante essa justificativa meramente subjetiva.

O cerne da discussão diz respeito à plausibilidade da opção externada pelo Conselho de Sentença, quando não tem ressonância nos autos.

Não é de se cogitar que a acolhida do quesito absolutório genérico colocaria o agente incólume de novo julgamento, por resultar da votação de quesito obrigatório. É que, nada obstante os jurados estarem atrelados à sua íntima convicção, isso não lhes dá o direito de adotarem conclusões ilegais. É por isso cabível a possibilidade de revisão do julgado pela alínea “d” do inciso III do art. 593 do estatuto processual penal.

Se os jurados decidem contra a prova dos autos, de maneira manifesta, com a absolvição do acusado, o direito à vida, um dos direitos fundamentais não estará sendo protegido pela ordem jurídica, mas ao contrário, será grosseiramente atingido, denotando risco evidente de se tornar a proteção à vida um puro mito ou mera ficção.

Por outro lado, no sentido técnico, que nem sempre se harmoniza com o sentido humano, a reforma processual estabeleceu nova regra na quesitação, impondo indagação legal aos jurados no sentido de absolverem ou não o increpado. Essa providência decorre das peculiaridades do processo do júri, garantindo ao juiz leigo a liberdade de decidir sem ter de se explicar com o acerto legal. Criou-se verdadeira blindagem, já que os jurados estão autorizados a decidir, inclusive por influências que não foram bradadas da tribuna, ou que se encontrem incrustadas na prova. Mas isso não pode ser tomado de forma absoluta.

Colha-se a lição seca de GUSTAVO BADARÓ:

O quesito sobre absolvição é obrigatório, que deverá ser formulado, mesmo que as teses defendidas em plenário envolvam apenas a materialidade e a autoria, e já tenham sido refutadas pelos jurados, nas respostas positivas aos quesitos anteriores. Por exemplo, a defesa pode ter negado a autoria delitiva, o que não foi aceito pelos jurados que responderam positivamente ao segundo quesito, mas também decidiram que o acusado deveria ser absolvido por outro fundamento, ainda que não alegado em plenário, como por exemplo, a legítima defesa ou outra causa diversa da autoria. (Processo Penal, 3ª. Ed., Revista dos Tribunais, 2015, p. 711).

Essa possibilidade resulta de manifestação democrática no Tribunal do Júri, substituindo-se o direito positivo a cargo dos operadores do direito por um sentimento de justiça, próprio do povo que julga. A reforma do Júri alargou as possibilidades defensivas, mas não criou um super julgador.

Sobre a possibilidade de se pôr peias ao poder de julgar, confira-se o que pontifica ROBERT ALEXY:

Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento nos termos da lei de colisão. (Explicando o autor em outra passagem): O objetivo desse sopesamento é definir qual dos interesses – que abstratamente estão no mesmo nível – tem maior peso no caso concreto: (Teoria dos Direitos Fundamentais, 2ª. Ed., Malheiros, 2012, p. 95 e 117).

Nesse sentido, é possível enxergar que a garantia constitucional, guindada à condição principiológica: soberania dos veredictos, contrapõe-se a outra, de matiz essencial: a inviolabilidade da vida.

Assim, ainda que não se possa falar em garantia de natureza absoluta, a ponderação que há de ser feita entre os interesses postos em conflito, ou tensão na linguagem de ALEXY, deve pender em favor do direito à vida, este sim um direito-mãe, sem o qual os demais direitos e garantias fenecem.

Esse raciocínio destina-se a evidenciar que sob o manto da soberania dos veredictos, não pode o juiz leigo invocar um fi-lo porque qui-lo, porque também ele está adstrito a um mínimo de coerência com o que dos autos consta, para que possa justificar sua conclusão de forma plausível, senão compreensível. É por isso que a existência de versões possíveis afasta a pecha de manifestamente contrária à prova, daquela decisão que faz uma opção e assim afirma a soberania do Júri. Não é o caso de versão amparadora ou de clemência, quando o clamor por piedade não tem razão de ser, porque parte de um nada e ao nada é que se pode chegar.

Imagine-se que a votação converge com a prova quanto à autoria e materialidade, mas o agente é pessoa reconhecida por ostenta circunstâncias judiciais negativas, típica persona non grata na comunidade em que vive, ou às vezes, que nada desabona a vítima, ao contrário até, de modo a se poder intuir uma opinião desfavorável à conduta e pessoa do acusado. Nesse cenário não se consegue extrair motivação razoável para sentimentos piedosos em relação ao acusado. Essa ausência de supedâneo mínimo é que afasta a possibilidade jurídica de dó, de pena, que leva à clemência. Se não houvesse a necessidade de justificativa mínima plausível, ou por outro lado, se fosse absoluta a soberania dos veredictos, não haveria a possibilidade de novo julgamento pela admissibilidade genérica de decisão manifestamente contrária à prova dos autos.

A necessidade de controle da decisão do jurado é própria do sistema constitucional, do check and balance e da essência do recurso do art. 593, III, “d”/CPP, mesmo antes da reforma legal. Dessa maneira, não se apresenta como desarrazoado ter como admissível a possibilidade de absolvição por clemência, mas é preciso velar para que não se constitua uma arbitrariedade, o que se dá com a necessária vinculação dessa conclusão com o que restar apurado. Aliás nessa direção tem caminhado a jurisprudência da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, tendo como paradigma o HC 313251/RJ, de relatoria do Min. Joel Ilan Paciornik (RSTJ, 250/684).

Por essas razões e para que se tenha maior segurança jurídica quanto ao merecimento da piedade ou clemência do jurado e seus pares, é que a decisão que se sustenta exclusivamente no sentimento piedoso, que se mostra aparente e objetivamente injustificada, merece ser confirmada com a submissão a um novo julgamento, quando então se pode, ou não, confirmar a vontade popular.

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