Projeto de lei que tramita no Congresso Nacional prevê paridade de gênero nos conselhos de sentença dos tribunais do júri
Carolina Abelin - Jornalista - Jornal O Estado de SP
Maria* tinha 27 anos, era estudante de enfermagem. Ela foi encontrada morta dentro da própria casa com perfurações na altura do peito. Uma semana depois, o ex-namorado foi preso, e com ele foi encontrada a faca usada no crime. O homem alegou legítima defesa e disse que, durante uma discussão, quem teria pegado uma faca de cozinha primeiramente contra ele foi a jovem.
Dois anos se passaram e Fernando*, réu por homicídio qualificado (feminicídio), será julgado pelo Tribunal do Júri, como determina a legislação brasileira para todo crime contra a vida.
Estamos, os 25 jurados convocados para a ocasião, presentes no plenário de número 12 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Do lado de lá da estrutura de madeira, com uma portinhola que separa o público, estão, em sua maioria, homens: o advogado de acusação, seu auxiliar, o defensor público, o policial na porta, o agente de justiça que organiza os trabalhos. A autoridade máxima, porém, é uma mulher. A juíza inicia o sorteio. Apenas sete irão integrar o corpo de jurados. Como praxe, a juíza pede que, ao ter o nome sorteado, o jurado se levante e se apresente, falando também sua idade e profissão.
Juliano*, 38 anos. Gerente comercial.
“Alguma objeção?”, pergunta a juíza. Sinais negativos com a cabeça.
Otávio*, 52 anos. Engenheiro. Sem objeções.
Karen*, 31 anos. Arquiteta. “Recuso, vossa excelência”, diz a defesa.
Olegário*, 47 anos. Mestre de obras. Sem objeções.
Carolina, 38 anos. Jornalista. “Recuso”, vossa excelência.
Jorge*, 27 anos. Estudante. Sem objeções.
Mateus*, 31 anos. Analista de sistemas. Sem objeções.
Jussara*, 29 anos. Professora. “Recuso, vossa excelência”.
Júlio*, 25 anos. Vendedor. Sem objeções.
Altamir*, 42 anos. Encarregado de turno. Sem objeções.
Conforme a lei, advogado de defesa e promotor podem negar, sem justificativa, três jurados cada. E foi assim, com as três mulheres sorteadas sendo recusadas, que o Tribunal do Júri para julgar um feminicídio foi formado apenas por homens. Sete homens para julgar um crime cuja motivação é relacionada à condição de gênero. A maior de todas as violências endereçadas ao feminino.
Você pode imaginar a surpresa e indignação minha e das outras mulheres com a situação. Muitos certamente ficariam indiferentes ao resultado do sorteio, na maioria homens, claro, do alto da sua autoridade e superioridade, que lhe foi conferida ao longo dos séculos, legitimada todos os dias, inconscientemente, toda vez que um homem tem um salário maior que o de uma mulher, mesmo que ambos exerçam a mesma função. Toda vez que os afazeres domésticos recaem sobre elas como “ordem natural das coisas”. Toda vez que, ainda que sendo ambos filhos do mesmo pai e da mesma mãe, os irmãos Aninha e Joãozinho têm deveres e direitos diferentes. Toda vez que uma mulher é privada da liberdade de ir aonde quer ou vestir o que deseja, por receio do que pode inventar a cabeça do próximo a respeito do que ela está comunicando com determinado comportamento.
O menosprezo e a discriminação são manifestações que têm suas raízes na construção histórica de uma sociedade desigual entre os sexos, seja por motivos de poder, econômico, político, cultural. O preconceito de gênero está em todos os setores e em todas as camadas da sociedade, portanto, sim, também nas decisões do Tribunal do Júri, e sim, sim, sim, num corpo de jurados formado por sete homens para julgar um caso de feminicídio.
Tanto sim que existe projeto de lei (PL) que tramita no Congresso Nacional (n.° 1.918/2021) que prevê paridade de gênero nos conselhos de sentença dos Tribunais do Júri: determina que ao menos quatro dos sete jurados devem ser mulheres em casos de crimes de feminicídio. Corre a passos lentos, aguardando designação de relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.
O feminicídio está na legislação brasileira desde 2015, ou seja, ontem em medida de tempo histórico. Foi quando o Código Penal teve o artigo 121 alterado por causa da Lei n.º 13.104, reconhecendo a circunstância qualificadora, com pena de reclusão de 12 anos a 30 anos e incluindo-o no rol dos crimes considerados hediondos no Brasil. Apesar do avanço, segundo as estatísticas, não apresentou variação negativa na última década: dados do Atlas da Violência 2024 (parceria do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública) dão conta de que, entre 2012 e 2022, ao menos 48.289 mulheres foram assassinadas no País. Foram quase 4 mil vítimas só em 2022, número que vem se mantendo nessa casa desde 2012, diferentemente da taxa geral de homicídios (homens e mulheres), que apresenta queda em dez anos.
É necessária, sim, a criação de mais instrumentos jurídicos e todos os que forem possíveis implementar para garantir o mínimo: que nós consigamos empatar esse jogo. Essa definição, aliás, é do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef): “nivelar os campos de jogo de garotas e rapazes, assegurando que todos tenham oportunidades iguais de desenvolver seus talentos”. É que trata-se de um 7 a 1 atualizado eternamente pelo algoritmo da desigualdade, menos mal, que agora parece estar decrescente, em tempos de modernização.
Equidade, um conceito utilizado na saúde e na justiça social, bem se aplica aqui. É dar mais a quem precisa de mais, é reconhecer que não estamos no mesmo patamar, então nós ajustamos essa balança.
*Os nomes são fictícios
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