César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri em Mato Grosso e ex-presidente da Confraria do Júri.
Maniqueu, filósofo heresiarca do século III, formatou o mundo permeado por uma luta constante entre o bem e o mal. Essa cosmovisão ficou conhecida por maniqueísmo (1).
Em 1978, na linha de tal configuração binária, bem versus mal, foi publicado o livro “A dança da morte”, de Stephen King (2). É um dos melhores livros do rei do terror. Aborda a guerra entre o bem e o mal após a humanidade ser quase dizimada por um vírus. É a luta pela sobrevivência em uma sociedade anárquica, hostil e brutal. Guardadas as devidas proporções, parece um livro profético sobre o que a humanidade vem enfrentando desde o fim de 2019, quando veio a lume a pandemia do coronavírus. Milhares de vidas foram extintas no globo terrestre por sua letalidade.
A humanidade experimentou, e ainda experimenta, a presença constante da morte. Vidas foram solapadas. Pessoas conhecidas, queridas e amadas, e desconhecidas tiveram a existência abreviada em razão da doença. Outras, sofrem com suas sequelas.
Ao lado do problema sanitário está o problema econômico. Pessoas entraram em colapso financeiro, perderam seus empregos, fecharam suas empresas e, por isso, estão privadas de necessidades básicas. Sobrevivem com muita dificuldade. O que é pior: muitas dessas pessoas seguem na existência terrena com os corações dilacerados pelo desfalque na família causado pela doença.
Navegando pela internet, zapeando a televisão, ouvindo o rádio ou folheando os jornais e as revistas, todos testemunharam a doação e a entrega de corpo e alma de milhares de profissionais da área da saúde para salvarem vidas. Aliás, muitos desses heróis, na linha de frente da guerra contra o vírus, se contaminaram e tombaram salvando e tentando salvar vidas. Cientistas e indústrias farmacêuticas desenvolveram vacinas em tempo recorde. Tudo em nome da vida.
O que esse quadro triste e dramático tem a ver com o Tribunal do Júri?
Pode não parecer, mas influenciará bastante nos julgamentos dos jurados.
José Ortega y Gasset, filósofo espanhol, em seu primeiro livro, de 1914, “Meditaciones del Quijote”, citou a famosa frase: “Eu sou eu e minha circunstância”(3). Quem somos e o que nos rodeia fazem toda a diferença em nossas vidas, inclusive na tomada de decisões.
O Júri lida com os crimes de sangue, que se relacionam com as condutas humanas mais graves, pois atentam contra a fonte de todos os interesses, direitos e deveres humanos, que é a vida.
Os jurados, conectados com a realidade do cotidiano, estão imersos nesse caldo nefasto causado pelo vírus e fermentado pela ação, omissão e incompetência de agentes públicos no combate à pandemia. Presenciaram, e ainda presenciam, a luta renhida pela vida em um ambiente agreste.
Por consequência, a tendência é que, de um lado, haja forte apego à defesa e à proteção do direito à vida e, por outro lado, exista demasiada repugnância e intolerância ao ato assassino. Os jurados decidirão sob a influência do status quo em que muitos lutaram, lutam e lutarão para salvarem vidas. A sacralidade e a importância do direito à vida e da existência de uma pessoa, juntamente com o sentimento de luto, estão latentes na consciência de todos, incluindo, obviamente, os jurados. E isso refletirá na escolha do monossílabo, quando da votação dos quesitos.
A importância do cuidado com a vida é discurso corrente na voz do Ministério Público no plenário do Júri e, sem dúvida, se tornará ainda mais forte ante as circunstâncias em que todos estão atolados.
Portanto, o princípio da primazia da proteção integral da vida, que reclama a filtragem dos fatos, das provas e da lei em favor da vida (pro vita), estará mais vivo do que nunca nos debates no plenário do Tribunal do Júri e, certamente, fortalecerá a cultura da bio-hermenêutica(4) na justiça popular, qual seja, a escolha dos veredictos se guiará pela bússola da melhor defesa e da melhor proteção do direito à vida, que é a razão de ser de todos os direitos e de todas as coisas. Com certeza, os jurados, guiados pelo espírito de comunidade, com responsabilidade social e cívica, escolherão o lado dos que lutam pela vida, pela paz e pela defesa da sociedade, em sintonia com a sacralidade da vida humana.
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1 - RUBIO, Fernando Bermejo; TORRENT, José Monserrat. El maniqueísmo: textos e fontes. Madrid: Editorial Trotta, 2008.
2 - KING, Stephen. A dança da morte. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
3 - Ortega y Gasset, J. (1966). Meditaciones del Quijote. In Obras completas de José Ortega y Gasset (7a ed., Vol. 1, pp. 310-400). Madrid: Revista de Occidente. (Trabalho original publicado em 1914)
4 - A interpretação em favor da vida, e não a necro-hermenêutica que beneficia injustamente quem se levantou contra a existência alheia. Afinal, O grau de civilização de um povo é mensurável pelo grau de proteção do direito à vida, que inclui a seriedade e a gravidade da punição ao assassino.