César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri. Ex-presidente da Confraria do Júri.
O médico e escritor gaúcho Moacyr Jaime Scliar replicava uma história intrigante e reflexiva contada pela filósofa existencialista francesa Simone de Beauvoir, ambos de saudosas memórias.
A história: uma mulher, que sofria violência conjugal, passou a se relacionar amorosamente com outro homem, onde o encontrava semanalmente. Para visitá-lo, tinha que atravessar um rio, pela ponte ou pelo barco. Nas imediações da ponte, agia um assassino que atacava os transeuntes que por ali passavam. Por isso, a mulher fazia a travessia pelo barco. Certa vez, perdeu a hora na casa do amante e quando chegou à margem do rio para efetuar a travessia, o barqueiro se recusou a levá-la, ao argumento de que seu turno havia terminado. Ela, desesperada, voltou à casa do amante e pediu que a acompanhasse pela ponte, o que foi negado por estar cansado. Então, ela foi só e o pior aconteceu: foi ferida mortalmente pelo assassino.
Após contar essa história, a filósofa indagava: quem foi o culpado? O marido violento, o barqueiro burocrata, o amante preguiçoso ou a mulher infiel?
Em seguida, comentava que, em geral, os maus julgadores culpavam uma dessas pessoas, esquecendo-se do verdadeiro e único culpado: o assassino. É como se fosse natural matar alguém, dizia ela com indignada franqueza.
Com frequência, quadro semelhante é pintado pela defesa nos processos afetos aos crimes de sangue que são julgados pelos jurados no Tribunal do Júri.
A técnica defensiva muito comum é a transferência de responsabilidade para a vítima e terceiras pessoas visando elidir a culpa do acusado. Por trás da estratégia da defesa e das teorias da conspiração, oculta-se uma agenda muito clara: a impunidade.
Imputa à polícia eventual negligência na investigação, pois deixara de arregimentar outras provas ou trabalhar com outras linhas investigatórias. Imputa ao Ministério Público por não ter fiscalizado a contento o trabalho policial e nem ter o suprido em algumas das fases da persecução penal. Imputa à terceiras pessoas, que, supostamente, teriam motivos para cometer o assassinato. Imputa à própria vítima, por seu mau comportamento social ou por sua provocação/agressão inicial. Vale-se, em síntese, da técnica “Homer Simpson”, em que o pitoresco personagem do famoso seriado criado por Matt Groening, no episódio "Thanks God, it''s Doomsday", da 16ª Temporada, afirma isto: “a culpa é minha e eu coloco ela em quem eu quiser!”. Segue a máxima de Millôr Fernandes: “errar é humano e colocar a culpa nos outros também”.
Então, fica bastante claro que a defesa busca embaralhar a compreensão dos jurados, com a disseminação da dúvida com o propósito de alcançar a absolvição do culpado ou, ao menos, minorar a sua culpabilidade, com a condenação à pena aquém da devida. Para tanto, em vez de defender, ataca, como se a melhor defesa fosse o ataque. No exercício da plenitude de defesa, busca construir suas teses a partir da desconstrução da prova e transferência de responsabilidade. Segue o modelo do Éden, em que Adão transferiu a culpa da transgressão à ordem divina à Eva, que, por sua vez, não hesitou em transferi-la à serpente.
Em regra, no plenário do Júri, há no mínimo três vítimas, podendo haver uma quarta. A primeira, a sacralidade da vida, a fonte de todos os direitos humanos, em sentido geral – a morte de qualquer pessoa importa à humanidade; a segunda, a vida efetivamente atacada, em sentido específico, diz respeito à pessoa que sofreu a ação mortífera; a terceira, a verdade, ou seja, após concretizar seu desejo assassino, o agente buscará atacá-la mediante golpes de língua própria e de terceiros (“testemunhas de viveiro”). Se não teve freio moral que o impedisse de desrespeitar a vida (“não matarás”), não terá compromisso algum com o dever de dizer a verdade (“não mentirás”), ainda mais quando sua liberdade está em jogo. A mentira, então, é o primeiro instrumento em busca da impunidade. E, por consequência, torna-se a principal matéria-prima das teses defensivas. O advogado privado ou público fica amarrado a tal matéria-prima. Afinal, o conflito entre a autodefesa e a defesa técnica enseja a dissolução do conselho de sentença por estar o acusado indefeso.
Como pregou Padre Antônio Vieira, “a inteireza da verdade consiste em dizer o que é, assim como é: e assim como dizer mais do que é, é mentira por excesso, assim dizer menos do que é, é mentira por defeito.” O acusado sonega, o quanto pode, dados entorno de sua obra macabra. Não tem compromisso algum com a verdade. Almeja a impunidade.
E a quarta vítima? Pode ser a justiça, se o membro do Ministério Público não se esmerar em sua atuação na persecução penal de crimes afetos ao Tribunal do Júri, incluindo-se a sustentação oral informativa, embasada, persuasiva e convincente no plenário popular.
Mas e no caso da vítima ter o comportamento social desajustado?
É comum vermos nos processos do Júri, a defesa se insurgindo contra a juntada ou à menção em plenário dos maus antecedentes do acusado, amparada no Direito Penal do Fato. Mas, incoerentemente, também é comum vermos nos mesmos processos a defesa promovendo a juntada e se valendo dos maus antecedentes da vítima em sua sustentação oral junto ao corpo de jurados. Com uma incoerência do tamanho do mundo, para a defesa, o Direito Penal do Autor não é permitido, mas o Direito Penal da Vítima é perfeitamente admissível!
Vale lembrar que o tipo penal afeto ao crime de homicídio prevê a fórmula curta e clara “matar alguém”. Quer dizer, seja quem for. Toda e qualquer pessoa, por pior que seja seu comportamento social, é portadora da sacralidade da vida. Não é necessário que seja “anjo” ou “demônio”, mas basta que seja o ser vivo nascido de mulher, como dizia o grande Nelson Hungria, com seus defeitos e suas qualidades. A biografia da vítima servirá de norte para a dosimetria da pena, conforme as consequências do desfalque em seus círculos de convivência e prejuízo para a sociedade, na forma do artigo 59 do Código Penal.
O Tribunal do Júri é um mecanismo importantíssimo de produção de justiça, com o selo da democracia. O povo, como fonte primária do poder, na condição de jurado, julgará os crimes de sangue e fixará o padrão de conduta exigido pela sociedade. O Tribunal do Júri é competente para julgar os crimes que ofendem o alfa e o ômega de todo e qualquer interesse ou direito humano, a vida, e, por isso, deve servir para reafirmá-la e jamais ser utilizado como escudo de assassino. Enfim, a memória da pessoa vitimada, a família pranteada e enlutada, a sociedade desfalcada, a comunidade indignada, a verdade e a justiça clamam, reclamam e conclamam pelo zelo, pelo respeito e pela reverência ao direito à vida.
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