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15/07/2025  - Crianças podem prestar depoimento no plenário do júri?
 
Heitor Moreira de Oliveira, juiz de Direito da Comarca de São Bernardo do Campo (SP). Artigo veiculado originariamente no site Conjur.

Como magistrado e professor, ao longo dos últimos anos ao coordenar cursos e ministrar palestras sobre o tema, muitos alunos e ouvintes apresentam dúvidas práticas sobre o depoimento especial e uma delas quase sempre aparece: é possível a tomada do depoimento especial em processos do Tribunal do Júri?

O júri popular tem competência constitucional para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio, aborto e instigação e induzimento ao suicídio). É perfeitamente possível que crimes assim tenham crianças e adolescentes como vítimas ou testemunhas. Exemplo 1: adolescente vítima de homicídio tentado. Exemplo 2: criança que testemunhou o feminicídio praticado pelo pai contra a sua mãe. Assim, em tese, é possível que crianças e adolescentes sejam ouvidos no processo do Tribunal do Júri como vítimas ou testemunhas, o que atrai o procedimento do depoimento especial previsto na Lei nº 13.431/2017.

Ocorre que a possibilidade concreta de oitiva de crianças/adolescentes nesses processos coloca em evidência alguns aparentes conflitos existentes entre dois procedimentos que, à primeira vista, são significativamente diversos: o procedimento do depoimento especial e o procedimento do Tribunal do Júri.

No cerne dos possíveis conflitos havidos entre o depoimento especial e o Tribunal do Júri está a difícil conciliação estrutural entre o rito bifásico do Júri e a regra da irrepetibilidade da oitiva da criança e adolescente vítima ou testemunha. Com efeito, a possibilidade de produção probatória em dois momentos distintos e o caráter solene, público e performático do julgamento em plenário levantam questões complexas: como compatibilizar a liturgia do júri com a necessária proteção da criança/adolescente? É admissível que uma vítima ou testemunha infantil preste depoimento perante os sete jurados leigos? E, principalmente: se já ouvida na primeira fase pode ser novamente inquirida em plenário? Este artigo se propõe a deslindar esses questionamentos.

Regras gerais sobre o Tribunal do Júri

O Tribunal do Júri, inscrito no rol de direitos e garantias fundamentais (artigo 5º, XXXVIII, CF), é mais do que um órgão do Poder Judiciário; é uma expressão da cidadania e da democracia participativa. Com efeito, trata-se de uma instituição do Poder Judiciário que permite a participação popular direta no julgamento de crimes específicos. Ou seja: nele o acusado da prática de um crime é julgado por seus pares, isto é, por pessoas comuns do povo, que atuam como Juízes leigos, chamados de jurados. No Brasil, a competência mínima do Tribunal do Júri é definida na Constituição para julgamento dos crimes dolosos contra a vida (e conexos), o que coloca a instituição no epicentro dos dramas humanos mais intensos e sensíveis.

A Constituição estabelece princípios essenciais que regem o Tribunal do Júri: a plenitude de defesa, que garante ao acusado uma defesa completa e abrangente, que vai além da ampla defesa e permite o uso de argumentos jurídicos, emocionais e persuasivos; o sigilo das votações, que assegura que o voto dos jurados seja secreto, protegendo-os de pressões externas e garantindo a imparcialidade do veredicto; e a soberania dos veredictos, que torna a decisão dos jurados sobre a culpa ou inocência do réu soberana, de modo que, mesmo que haja recurso, o tribunal superior não pode modificar a decisão de mérito do júri; pode apenas determinar um novo julgamento pelo júri popular. Tais princípios conferem uma arquitetura única ao Tribunal do Júri.

No Tribunal do Júri, a atuação do juiz se divide em duas figuras distintas, cada uma com funções específicas: o juiz togado (ou juiz-Presidente), magistrado de carreira, concursado e com formação em direito, e os juízes leigos (os jurados), cidadãos comuns, sem formação jurídica específica, que são selecionados por sorteio para compor o conselho de sentença. O juiz togado não decide sobre a culpa ou inocência do réu na fase de julgamento (essa é a função dos jurados), mas preside o processo e conduz o julgamento no plenário, proferindo a sentença em conformidade com o que foi decidido pelos jurados. Os juízes leigos decidem o mérito, ou seja, eles são os responsáveis por decidir sobre a culpa ou inocência do acusado e a sua decisão, neste ponto, é soberana. Essa divisão de funções é a essência do Tribunal do Júri, que busca conciliar o conhecimento técnico-jurídico com a participação popular na administração da Justiça.

A decisão dos jurados sobre o mérito da causa (absolvição/condenação do réu) é final, não podendo ser substituída por um veredicto de mérito de um tribunal togado. Decorre daí um forte argumento, frequentemente brandido, em favor da imediação: os “juízes de fato” precisariam ter contato direto e sensorial com a prova produzida, especialmente a prova oral, para formar sua íntima convicção. A propósito, a oralidade, a concentração dos atos e a publicidade da sessão em plenário reforçam essa ideia de que a verdade emerge do embate direto e público das narrativas. Em outras palavras, no procedimento do júri, em regra, a prova é produzida em Plenário, na presença dos sete jurados (juízes leigos), em sessão solene, aberta ao público ouvinte, salvo nos casos excepcionais em que o processo tramita em segredo de justiça.

O procedimento do Tribunal do Júri é bifásico. A primeira fase (judicium accusationis) funciona como um filtro processual, sob a condução do juiz togado, que avalia a admissibilidade da acusação. Nesta fase, o processo muito se assemelha ao processo comum ordinário, sendo realizada audiência de instrução na qual a prova oral é produzida perante o magistrado, o promotor, o defensor/advogado, o réu, etc. Se o acusado for pronunciado, o processo avança para a segunda fase (judicium causae), o julgamento em plenário.

Nesta nova fase, testemunhas, vítima e réu são ouvidos novamente, agora perante o Conselho de Sentença, o público e as partes, em um ambiente de alta carga emocional e retórica. Portanto, se houver a pronúncia do réu e o caso for levado ao plenário, haverá duas audiências, uma na primeira fase e outra na segunda fase. Logo, é da essência do procedimento bifásico do júri que haja a repetição dos depoimentos.

Regras gerais sobre o depoimento especial

O depoimento especial não é uma mera adaptação procedimental; é a incorporação de um novo paradigma. Fundamentado na doutrina da proteção integral, com assento constitucional (artigo 227 da Constituição) e em tratados internacionais, ele reconhece a criança e o adolescente como sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento.

Com o depoimento especial, a oitiva deixa de ser um ato puramente jurídico para se tornar um procedimento psicossocial-jurídico, que visa a um duplo objetivo: obter um relato fidedigno (melhoria da qualidade da prova) e proteger a integridade e saúde mental do depoente (proteção contra a revitimização).

A chave para esse sistema é o entrevistador forense. Ele não é um mero tradutor ou repetidor de perguntas. É um técnico que aplica protocolos cientificamente validados, baseados em décadas de pesquisa sobre memória, sugestionabilidade e trauma infantil. A entrevista se inicia com uma fase de narrativa livre, na qual a criança relata o que se recorda sem interrupções, seguida de perguntas abertas e não sugestivas para fins de detalhamento e esclarecimento do relato.

Diferentemente de uma oitiva tradicional, no depoimento especial há a separação física do ato em dois ambientes distintos. A sala de depoimento especial é um espaço neutro, acolhedor e seguro, onde ficam apenas o depoente infantojuvenil e o entrevistador. A sala de audiência (ou de observação) é onde o contraditório e a ampla defesa são exercidos, mas de forma mediada. Nela, o juiz, o promotor de justiça, o defensor/advogado e o réu acompanham tudo por videoconferência, em tempo real (in real time).

Após o livre relato da vítima ou testemunha, é possível que as partes façam questionamentos ao depoente. As perguntas da acusação e da defesa são dirigidas ao magistrado, que atua como um primeiro filtro de legalidade e pertinência, e, sendo deferidas, são repassadas ao entrevistador. Este, por sua vez, tem o dever técnico de adaptar a pergunta à capacidade de compreensão do infante, expurgando elementos indutivos ou inadequados. O contraditório é, assim, preservado, mas adaptado à vulnerabilidade do depoente, em um equilíbrio que prestigia tanto a busca da verdade quanto a dignidade humana.

Regra da irrepetibilidade do depoimento especial e procedimento bifásico do Tribunal do Júri: como compatibilizar?

Uma das faces mais cruéis da violência institucional é a repetição desnecessária de procedimentos. Submeter uma criança ou adolescente a sucessivas inquirições sobre um evento violento é forçá-la a reviver indefinidamente o trauma, gerando ansiedade, estresse e podendo contaminar a própria qualidade da memória. Ciente disso, o artigo 11, caput, da Lei nº 13.431/2017 elegeu a oitiva única como o cenário ideal e a regra a ser perseguida: “o depoimento especial será realizado, sempre que possível, uma única vez”.

Assim sendo, como conciliar essa regra de um único depoimento especial ao procedimento bifásico do Júri, onde por essência é possível que haja a repetição de oitivas (um na primeira fase, outra na segunda fase)? Para enfrentamento dessa questão, é possível vislumbrar três diferentes cenários:

a) oitiva na primeira fase e transmissão em Plenário (a solução preferencial): se a criança já foi ouvida na primeira fase, em depoimento especial produzido sob o contraditório, a solução que melhor compatibiliza todos os princípios é a transmissão da gravação audiovisual aos jurados em plenário (artigo 12, VI, da lei), dispensando-se uma nova oitiva na segunda fase. Esta prática não viola a soberania dos veredictos nem a imediação. Pelo contrário, pode até qualificá-la.

Os jurados terão acesso a um relato colhido em ambiente controlado, por um técnico, livre das contaminações e do estresse do Plenário. Poderão analisar a narrativa, as hesitações e as emoções da criança de forma mais serena. Inclusive, a prática de transmissão do depoimento realizado na primeira fase tornou-se cada vez mais usual após a Covid-19. Naturalmente, por se tratar de ato sigiloso (artigo 12, §6º), a exibição do vídeo demanda o esvaziamento do plenário, com a permanência apenas dos atores processuais indispensáveis.

b) oitiva apenas na segunda fase: se a criança não foi ouvida na primeira fase, é plenamente possível que o depoimento especial ocorra, pela primeira vez, durante a instrução em plenário, observando-se as adaptações que veremos a seguir.

c) o pedido de repetição da oitiva em plenário: este é o cenário de maior complexidade: a criança já foi ouvida na primeira fase e há pedido de alguma das partes pleiteando por sua nova oitiva na segunda fase. A repetição da oitiva, como visto, em regra, é vedada. A exceção, restritíssima, está no artigo 11, §2º da lei, que exige a cumulação de dois requisitos: decisão judicial que justifique a imprescindibilidade da nova oitiva; e a concordância da vítima ou testemunha (ou de seu representante legal).

A análise da imprescindibilidade da nova oitiva deve ser rigorosa. Não basta a alegação genérica de “plenitude de defesa” ou que “os jurados precisam ver a reação da criança”. Isso seria transformar a exceção em regra, aniquilando a proteção legal. Entendemos que a imprescindibilidade deve se basear em fatos novos e concretos, surgidos após a primeira oitiva, que tornem o novo depoimento o único meio de sanar uma dúvida crucial para o deslinde da causa. O exemplo da carta de retratação, surgida entre a pronúncia e o julgamento em plenário, ilustra bem uma hipótese de real imprescindibilidade.

Uma vez que o juiz, em decisão fundamentada, reconheça essa excepcionalíssima necessidade, passa-se ao segundo requisito: o consentimento. Este não é um ato formal. A criança ou o adolescente, por meio de seu representante legal e com o auxílio de um profissional da equipe técnica, deve ser esclarecido sobre o que significa prestar um novo depoimento, para então manifestar sua vontade livre e informada. Se houver recusa, o ato não se realizará, ainda que o juiz o considere imprescindível. A autonomia da vontade da vítima, neste ponto, prevalece como barreira intransponível à revitimização.

Como acontece, na prática, o depoimento especial na segunda fase do rito do júri?

Nas hipóteses em que a oitiva ocorrer na segunda fase do júri, seja pela primeira vez, seja excepcionalmente pela segunda (por aplicação do artigo 11, §2º, da lei), algumas cautelas e adaptações são imperativas para garantir a proteção do depoente:

a) local da oitiva: a criança não é levada ao plenário; ela permanece na sala de depoimento especial, com o entrevistador. O Plenário do Júri faz as vezes da “sala de observação”, recebendo a transmissão em tempo real via videoconferência;

b) controle de acesso: no momento em que a criança presta o depoimento especial, o plenário deve ser esvaziado, com a retirada do público. A publicidade, neste caso, cede espaço à proteção da intimidade e à vedação da exposição da criança, tendo em vista que o depoimento especial tramita em segredo de justiça (artigo 12, §6º, da lei);

c) o papel do juiz-presidente: além de presidir os trabalhos, ele deve ser o guardião da proteção da criança, indeferindo perguntas não apenas impertinentes, mas também aquelas formuladas de modo a constranger, induzir ou revitimizar o depoente;

d) a participação dos jurados: os jurados, como juízes de fato, assistem à transmissão e têm o direito de formular perguntas para esclarecer pontos duvidosos (artigo 474, § 2°, do CPP). Contudo, seus questionamentos seguirão o fluxo de mediação: o jurado dirige a pergunta ao juiz-presidente, que a avalia e, se a deferir, a repassa ao entrevistador, que, por fim, a adapta e a apresenta à criança; e

e) preparação e informação: a equipe técnica deve preparar a criança, explicando quem são os jurados e por que eles estarão assistindo, para reduzir a ansiedade e dar sentido àquele procedimento.

À vista dessas adaptações, é forçoso concluir que a aparente antinomia entre o rito do Júri e o depoimento especial se resolve não pela supressão de um em detrimento do outro, mas por uma sofisticada e necessária harmonização sistêmica. A justiça feita no Tribunal do Júri não pode, sob o pretexto de sua soberania, atropelar a dignidade de uma criança. A solução reside na inteligência adaptativa do processo penal, utilizando a tecnologia e as balizas protetivas da Lei nº 13.431/2017 para garantir que os jurados tenham acesso a uma prova oral qualificada, sem que isso custe à criança um novo trauma.

A repetição do depoimento deve ser tratada com a excepcionalidade que a lei lhe confere, como uma medida de ultima ratio, submetida a um controle judicial rigoroso e, acima de tudo, ao consentimento soberano daquele que o sistema tem o dever precípuo de proteger: a criança.
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Heitor Moreira de Oliveira é juiz de Direito da Comarca de São Bernardo do Campo (SP). Presidente do Foeji (Fórum Estadual das Juízas e dos Juízes da Infância e Juventude) de SP. Juiz integrante do Foninj (Fórum Nacional da Infância e da Juventude). Doutorando em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (Univem) e graduado em Direito pela UFG (Universidade Federal de Goiás), tendo realizado Programa de Intercâmbio Acadêmico Internacional (com bolsa) na Universidade de Coimbra, Portugal. É Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera — Uniderp e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes. Juiz colaborador da EPM (Escola Paulista da Magistratura). Membro do Fonajup (Fórum Nacional da Justiça Protetiva) e do IBDCRIA (Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente).

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