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18/10/2016  - O “Golpe do Seguro” - O relato de um grande caso envolvendo crime doloso contra a vida no interior de MT
 
Anne Karine Louzich Hugueney Wiegert, promotora de Justiça em Cuiabá. Boletim Réplica Eletrônica - Núcleo do Tribunal do Júri

Em meados de 2009, tão logo assumi as atribuições da Promotoria Criminal de Sorriso/MT, deparei-me com dois volumosos processos em andamento que apuravam homicídios, estelionatos e outros delitos praticados por um grupo de pessoas, cujos integrantes haviam se associado, de forma estável e permanente, com o fim de executar uma horrenda empreitada criminosa que se convencionou denominar de “Golpe do Seguro”.

Sem sombra de dúvidas, tratava-se do caso de maior repercussão social na comarca, tendo recebido cobertura midiática equiparada à atenção dispensada aos crimes mais emblemáticos do país, respeitada a devida proporção.

Em resumo, o bando elegia cuidadosamente suas vítimas, dentre aquelas mais humildes, simples e de pouca instrução, conquistava-lhes ardilosamente a confiança e lograva formalizar em nome daquelas, junto às instituições financeiras, contratos de seguro de vida pessoal, tendo como beneficiários dos valores correspondentes às vultuosas indenizações tanto as genitoras das vítimas, quanto integrantes da quadrilha. Em seguida, planejavam e executavam os crimes de homicídio, simulando mortes acidentais, cujo artifício amparava o levantamento das indenizações dos seguros de vida contratados.

A trama criminosa, com todos os seus personagens, roteiros, cenários e efeitos especiais, assemelhava-se a um longa-metragem cuja estreia angustia os cinéfilos de plantão.

A demonstrar que a estória garantiria aos espectadores “fortes emoções ou seu dinheiro de volta”, basta dizer que, no curso das investigações, um dos mentores do grupo (J.C.Z.), a amante deste (também componente da inescrupulosa quadrilha) e uma testemunha (dona do prostíbulo frequentado pelo bando e ex-amante de J.C.Z.) foram executados, ocasião em que o assassino confesso houve por bem revelar, com riqueza de detalhes, a formação do bando, suas práticas delituosas, bem como o planejamento e preparação do próximo “golpe do seguro”, dessa vez tendo como vítima a própria esposa do líder da quadrilha assassinado (J.Z.C.).

Dada a complexidade do caso, forçosa a delimitação deste relato, que passará a tratar apenas dos julgamentos de um dos líderes do bando, o acusado E.D., vulgarmente conhecido por “Alemão”.

Como mencionado acima, o esquema criminoso arquitetado e executado por essa quadrilha foi levado à apreciação da justiça por meio de duas denúncias que inauguraram processos bastante volumosos.

Cada um dos processos tinha por objeto um crime doloso contra a vida (homicídio qualificado) e alguns delitos conexos (estelionato, formação de quadrilha, etc.). As respectivas denúncias inseriam os homicídios no mesmo contexto fático precedente: os réus e outros indivíduos não identificados haviam se associado, de forma estável e permanente, com o fim de colocar em prática do vil e macabro plano criminoso denominado “Golpe do Seguro”, sendo a quadrilha liderada por “Alemão” e J.C.Z. (falecido), o qual mantinha relacionamento amoroso extraconjugal com M.I. (falecida), também componente do bando.

O primeiro crime de homicídio foi praticado contra a vítima Ademir Hoffmann. Homem simples e trabalhador, Ademir morava em Sorriso/MT com uma companheira, enquanto seus genitores residiam no Paraguai. Tão logo conheceu e ganhou a confiança de Ademir, “Alemão” contratou com este uma sociedade no ramo da construção civil e, em seguida, induziu-o a celebrar seguro de vida em que o próprio “Alemão” figurava como beneficiário de 50% da indenização, enquanto os outros 50% seriam destinados à genitora de Ademir. Feito isso, passou-se a arquitetar detalhadamente o homicídio da vítima, que deveria aparentar uma morte acidental. Assim, na tarde de 04 de janeiro de 2007, previamente ajustado com os demais integrantes do bando, “Alemão” convidou Ademir para irem pescar no local denominado Prainha, no Rio Teles Pires, enquanto os dois executores – o diretor da Cadeia Pública de Sorriso/MT à época e um reeducando – aguardavam, no local, o sinal para matarem a vítima. Para criar um álibi que o isentasse de qualquer responsabilidade, “Alemão” convidou o irmão de Ademir, que se encontrava a passeio em Sorriso/MT, para também participar da pescaria. Em dado momento, porém, chamou o irmão da vítima para que retornassem à cidade, alegando que necessitava buscar mais bebida, enquanto Ademir permanecera no local pescando. No instante em que deixavam o local, “Alemão” deu o sinal combinado para os executores matarem Ademir, os quais agiram conforme planejado, simulando um afogamento acidental. Após a execução do crime de homicídio, “Alemão” levantou facilmente sua parte no seguro de vida (R$ 250.000,00) e, com o auxílio de outros integrantes da quadrilha, falsificou vários documentos, dentre o RG da mãe da vítima e um comprovante de endereço na cidade de Sorriso/MT, o que viabilizou a abertura de uma conta bancária em nome da genitora de Ademir e o levantamento da outra parte do seguro (R$ 250.000,00) por uma mulher não identificada, que usou de elaborado disfarce para se passar por mãe da vítima junto à agência bancária (envelhecimento de pele, cabelos, uso de óculos e roupas apropriadas para a idade).

Ocorre que, à época dos fatos, o inquérito policial instaurado para apurar as circunstâncias da morte de Ademir Hoffmann não apontou nenhum indício de prova no sentido de que houvesse ocorrido um crime de homicídio. Ao contrário, no dia seguinte, a Delegacia de Polícia recebeu um comunicado de localização do corpo de uma vítima pelo Corpo de Bombeiros, tendo os exames periciais do local do crime e de necrópsia indicado a ocorrência de morte acidental por afogamento. Inquiridos, o irmão da vítima e “Alemão” apenas relataram que, no dia dos fatos, haviam ido pescar com Ademir, sendo que, em dado momento, retornaram à cidade e, ao voltarem para o local da pescaria, não encontraram mais Ademir, razão porque foi acionado o Corpo de Bombeiros que acabou por localizar o cadáver da vítima no rio. Não houve notícia, naquele tempo, acerca da existência de qualquer seguro de vida em nome de Ademir. Em razão das provas colhidas não permitirem vislumbrar a ocorrência de crime, foi promovido e homologado o arquivamento do inquérito policial respectivo.

Após concretizarem com sucesso a primeira empreitada criminosa, acreditando terem encontrado o “caminho das índias” através de um “crime perfeito”, os integrantes do bando deram continuidade ao plano engendrado, buscando nova vítima para a execução do próximo “Golpe do Seguro”.

O segundo homicídio praticado pela quadrilha teve como vítima Valdecir Batista Miranda. Dessa vez, “Alemão” contou com intensa colaboração do acusado A.N.S., vulgo “Guina” para aliciamento daquela, tendo se aproximado de Valdecir, já em fevereiro de 2007, com a falsa promessa de conseguir dinheiro fácil mediante empréstimo junto a uma instituição financeira, de modo que a vítima pudesse abrir sua tão sonhada “bicicletaria”. Em seguida, abriram uma pequena empresa de fachada, denominada “Sorriso Publicidades”, colocando em nome de Valdecir o equivalente a 2% (dois por cento) do capital social, enquanto os 98% (noventa e oito por cento) restantes ficaram em nome de “Guina”. Aproveitando-se da ingenuidade e inexperiência de Valdecir (pessoa semianalfabeta), convenceram-no a outorgar a “Guina” uma procuração pública com amplos poderes, o que permitiu a abertura de várias contas bancárias e a contratação de um seguro de vida pessoal em nome da vítima (com garantia adicional por morte acidental – pagamento em dobro da indenização em caso de morte acidental), tendo como beneficiárias a mãe de Valdecir, com direito a 20% (vinte por cento) do valor da indenização, e M.I. (integrante da quadrilha e amante de J.C.Z), a quem caberia os 80% restantes. Com a concretização de todos os atos preparatórios, os agentes criminosos prosseguiram com o engendrado e diabólico plano criminoso, sendo que, no dia 19 de julho de 2007, “Alemão” e “Guina”, contando com a participação dos demais, levaram Valdecir até as imediações da rodovia MT 242, Km 05, e lá praticaram na vítima diversas lesões – tendo, inclusive, passado com um veículo sob o corpo de Valdecir – o que resultou em sua morte. Para simularem um “atropelamento acidental”, montaram no local um cenário com tralhas de pesca, uma bicicleta bastante danificada e pequenas partes de um veiculo automotor de grande porte, sugerindo que a vítima tivesse ido pescar e havia sido atropelada no caminho. Após a consumação do homicídio, a quadrilha levantou tranquilamente os 80% da indenização do seguro de vida que cabia a M.I. (R$ 400.000,00), somente não conseguindo receber artificiosamente o valor destinado à genitora de Valdecir (R$ 100.000,00), em razão dos familiares de Valdecir, que residiam todos em Sorriso/MT, terem descoberto, a tempo, a existência do seguro de vida contratado.

Importante destacar o termo inicial das investigações que culminaram no descortinamento de todo o esquema criminoso: em junho de 2007 (um mês antes do segundo homicídio), uma pessoa que não quis se identificar, em razão do grave estado de intimidação, repassou ao Promotor de Justiça à época, Dr. Marco Aurélio de Castro, informações que foram formalizadas como “notícia anônima”, dando conta que Ademir Hoffmann possuía um seguro de vida no banco Bradesco e havia sido morto (“afogado”) por um grupo de pessoas com a finalidade de receber o valor da indenização respectiva. Noticiou, ainda, que além de “Alemão”, faziam parte do bando o Diretor da Cadeia Pública e um servidor da Polícia Judiciária Civil de
Sorriso/MT, que dava cobertura às atividades ilícitas.

A partir dessa informação, foram realizadas diligências preliminares pelo Promotor de Justiça à época – localização e desarquivamento do inquérito policial, requisição de informações ao banco Bradesco acerca do seguro de vida em nome de Ademir Hoffmann – as quais demonstraram a verossimilhança dos fatos noticiados e subsidiaram a instauração de procedimento investigatório criminal para completa elucidação do crime.

Concomitantemente, tomando conhecimento acerca da existência de um seguro de vida em nome de seu filho, a genitora de Ademir Hoffman veio do Paraguai a Sorriso-MT, ocasião em que constatou junto à instituição financeira o recebimento da indenização por uma falsária, levando o fato a conhecimento da Autoridade Policial.

Na sequência, fora diligenciado pela Promotoria de Justiça no sentido de identificar e qualificar os integrantes do bando, levantar os numerais telefônicos por eles utilizados, sucedendo-se, então, os pedidos de interceptação telefônica e quebra de sigilos fiscais, bancários e telefônicos.

A esse tempo, já havia ocorrido o segundo homicídio (contra a vítima Valdecir Batista Miranda), cuja apuração pela Polícia Judiciária Civil tinha por objeto um suposto acidente automobilístico. Contudo, uma das irmãs de Valdecir – que acompanhou de perto o aliciamento da vítima por indivíduos desconhecidos, meses antes do fatídico, bem como descobriu, posteriormente, a existência de inúmeras contas bancárias, contrato social de empresa e seguro de vida em nome de Valdecir, cuja maior beneficiária (80%) se tratava de M.I., pessoa totalmente desconhecida da família – suspeitando que a morte da vítima não havia decorrido de mero acidente de trânsito, procurou o Ministério Público, em janeiro de 2008, e relatou todos os fatos e circunstâncias por ela levantados, ocasião em que lhe foram apresentadas pelo Promotor de Justiça à época, algumas fotos de pessoas relacionadas à investigação da morte de Ademir Hoffmann (o primeiro “Golpe do Seguro”), tendo a irmã de Valdecir, de plano e com a mais absoluta convicção, apontado “Alemão” como um dos indivíduos desconhecidos que presenciara na companhia de Valdecir, por diversas vezes no período que antecedeu sua morte, e que, segundo dizia a vítima, estaria lhe auxiliando a obter um empréstimo bancário.

Em razão disso, outro procedimento investigatório criminal fora instaurado na Promotoria de Justiça para apuração do segundo “Golpe do Seguro”, fundamentando novo pedido de quebra de sigilo bancário, visando angariar toda a documentação relativa à vítima Valdecir Batista Miranda.

As investigações, porém, ganharam fôlego quando da morte de J.C.Z e M.I – líder e integrante da quadrilha, respectivamente –, ocorrida em novembro de 2008, ocasião em que o assassino confesso houve por bem revelar, com riqueza de detalhes, a formação do bando e suas práticas delituosas, sucedendo-se, então, a oitiva de diversas testemunhas que, embora não tivessem presenciado a cena dos homicídios, reproduziram conversas travadas com integrantes da quadrilha e revelaram o teor de diálogos mantidos entre eles.

Durante a apuração dos fatos, em todas as oportunidades em que fora interrogado, “Alemão” negou veementemente sua participação na quadrilha e qualquer envolvimento nos crimes por esta praticados. A defesa se mostrava confiante na tese de negativa de autoria, sobretudo em razão da ausência de testemunhas oculares dos homicídios e do resultado insatisfatório das interceptações telefônicas. Ademais, tratava-se da concretização de um plano criminoso minuciosamente engendrado, com atuação premeditada e extremamente dissimulada, ocultação e destruição de provas e, inclusive, “execução” e coação de testemunhas.

Contudo, ao cabo da instrução criminal em ambos os processos, após sopesar todos os elementos informativos e indícios angariados em cada caso, acreditando que sua desvantagem era mais evidente face ao conjunto probatório relativo ao homicídio da vítima Ademir Hoffmann (em que “Alemão” figurou pessoalmente como beneficiário da indenização do seguro de vida e levantou facilmente o valor respectivo), a defesa de “Alemão” adotou a seguinte estratégia: pouco antes da sentença de pronúncia, peticionou naqueles autos e requereu que lhe fosse oportunizado novo interrogatório, ocasião em que “Alemão” confessou sua participação no homicídio que vitimou Ademir Hoffmann e, por outro lado, reforçou a negativa de autoria/participação no crime de homicídio praticado contra Valdecir Batista Miranda, alegando que, após a morte de Ademir, ficara profundamente arrependido, motivo pelo qual teria se afastado definitivamente das atividades criminosas do bando. Justificou, ainda, que não houvera confessado anteriormente em razão de ameaças sofridas.

Após ser pronunciado, “Alemão” foi submetido, em 30/03/2011, ao primeiro julgamento pelo Tribunal do Júri (referente ao crime de homicídio que vitimou Ademir Hoffmann e ao estelionato que propiciou o levantamento da indenização do seguro de vida respectivo). Em que pese a recente confissão de “Alemão” quanto à sua participação nesse caso, não nos descuramos da intensa preparação da tese acusatória, sobretudo diante das possíveis “surpresas” em plenário. Era preciso, ainda, desmascarar, de antemão, a estratégia da defesa de “Alemão” evidenciada em sua “confissão parcial” e demonstração de “falso arrependimento”, tudo minuciosamente pensado e arquitetado, de modo a buscar a confiança e credibilidade dos jurados quanto à negativa de autoria/participação referente ao segundo homicídio praticado pelo bando.

Sem maiores surpresas, porém, “Alemão” manteve em plenário sua confissão feita pouco antes de ser pronunciado, tendo sido condenado como incurso no artigo 121, § 2º, incisos I, III e IV, c.c. artigo 29 e artigo 171, caput, todos do Código Penal, que lhe resultou uma pena total de 17 anos de reclusão, redimensionada em segundo grau para 20 anos e 6 meses de reclusão, em regime inicialmente fechado.

A partir de então, iniciava-se uma verdadeira “via-crucis” para conseguir submeter “Alemão” ao segundo julgamento pelo Tribunal do Júri.

Por ocasião da primeira designação (23/09/2011), havia sido há pouco removida para a comarca de Diamantino/MT. No entanto, em razão de ter acompanhado toda a instrução criminal durante a primeira fase e realizado o primeiro júri de “Alemão”, disponibilizei-me a retornar a Sorriso-MT e coadjuvar a brilhante colega titular durante o julgamento em plenário.

Naquele dia seriam levados a julgamento “Alemão” e “Guina”. Contudo, o advogado constituído de “Alemão” não compareceu, alegando motivos de saúde, razão porque fora determinado o desmembramento do feito em relação a “Alemão” e submetido apenas “Guina” a julgamento (condenado, na ocasião, nos termos da denúncia).

Na sequência, sucederam-se inúmeros pedidos de redesignação por parte da defesa de “Alemão”, alternando-se os fundamentos, seguidos de adiamentos para readequação de pauta, até que, em 29/09/2013, quando já havíamos regressado e assumido a titularidade da 2ª Promotoria de Justiça Criminal de Sorriso-MT (com atribuição perante o Tribunal do Júri), aguardávamos a abertura dos trabalhos em plenário, ocasião em que fomos surpreendidos com uma petição do advogado comunicando sua renúncia ao mandato. Na oportunidade, “Alemão” informou que havia se desentendido com o causídico e que constituiria novo advogado. Redesignada a sessão para 11/10/2013, o novel advogado constituído pelo réu simplesmente não compareceu, tendo protocolado, ao final da tarde do dia anterior, um pedido de adiamento da sessão ao argumento de que não houvera tido tempo hábil para estudar o processo, malgrado tenha juntado a respectiva procuração nos autos quase vinte dias antes da sessão de julgamento.

Diante das claras e evidentes manobras protelatórias operadas pela defesa de “Alemão”, pedimos a palavra e fizemos constar em ata um longo e indignado pronunciamento, demonstrando pormenorizadamente todos os artifícios utilizados pela defesa técnica do réu para inviabilizar o julgamento, pugnando, ao final, pelo encaminhamento de cópia dos autos à OAB/MT, para conhecimento e providências, bem como fosse designada nova e derradeira data para a sessão do júri, nomeando-se e intimando-se a Defensoria Pública para patrocinar a defesa de “Alemão” em plenário, acaso o réu comparecesse novamente desacompanhado de advogado. Acolhido o pedido ministerial, o advogado constituído de “Alemão” fora regularmente intimado da decisão.

Na data de 29/11/2013, o toque da campainha marcava a abertura do segundo julgamento de “Alemão” pelo Tribunal do Júri. Como era de se esperar, no banco dos réus acomodava-se apenas o acusado, desacompanhado de seu advogado constituído. De prontidão, ali se encontrava o combativo Defensor Público que atuava perante o Tribunal do Júri. Ante a lotação do plenário por populares, os mais curiosos ali permaneciam em pé. Nenhum parente do acusado se fez presente (ao menos não tomamos ciência). Os familiares da vítima, por seu turno, assentaram-se nas primeiras fileiras. Toda a atenção era voltada à mãe de Valdecir que, aos seus oitenta e poucos anos e bastante debilitada após recente intervenção cirúrgica, ainda assim fazia questão de acompanhar todo o julgamento.

Durante a inquirição das testemunhas, nenhuma surpresa ou alteração de depoimento, sendo confirmadas as declarações feitas na fase administrativa e judicial. Ponto culminante, fora o depoimento da irmã de Valdecir, que narrou, de forma bastante emocionada, todo o caminho percorrido visando apurar os fatos por sua própria conta e risco, sobretudo as “portas fechadas” da Delegacia de Polícia (pois era sempre atendida por um servidor que se apurou ser integrante da quadrilha), até o momento em que adentrou na Promotoria de Justiça de Sorriso-MT e ali encontrou acolhida na pessoa do Dr. Marco Aurélio de Castro, renovando sua esperança na “justiça dos homens”.

Durante o interrogatório, “Alemão” reservou-se no direito de não responder a nenhuma das perguntas que lhe fossem formuladas.

Encerradas as inquirições em plenário, fomos procurados pela irmã da vítima que nos pediu que conversássemos com a genitora de Valdecir, a fim de demovê-la da pretensão de ali permanecer durante os debates, haja vista encontrar-se com a saúde debilitada e não lhe ser recomendável passar por fortes emoções. Embora sua presença em plenário pudesse conferir um “reforço a mais” ao discurso acusatório, sobretudo no instante em que buscaríamos envolver os jurados com as emoções decorrentes da dor irreparável da perda de um ente querido, não havia como negarmos o pedido dos familiares.

Assim, aproximamo-nos da mãe da vítima e sugerimos que ela se retirasse apenas durante os debates, justificando que seriam passadas imagens do cadáver de Valdecir através do projetor, o que certamente lhe causaria muito desconforto e abalo emocional. Contudo, firme no desejo de acompanhar o julgamento, mesmo que com prejuízo à sua própria saúde, concordou em retirar-se do plenário apenas pelo tempo necessário para a apresentação das fotos do cadáver da vítima. Antes, porém, com suas mãos trêmulas, segurou as nossas e, mirando-nos com simplicidade no olhar, disse que ali depositava toda sua confiança na “justiça dos homens”.

Com o peso da responsabilidade e impactada pelas palavras enfáticas e sinceras de uma mãe que, lutando contra o tempo, aguardava, há tempo, a concretização da justiça no tocante ao brutal e ignóbil homicídio de seu filho, iniciamos os debates.

Há que se dizer que a preparação para esse julgamento havia sido ainda mais intensa, tomando-nos a quase integralidade dos quatro dias que antecederam a sessão plenária. O réu negara insistentemente a autoria/participação no crime durante as fases anteriores. Nenhuma testemunha presenciara o momento do fatídico, embora todos os indícios de prova colhidos, inclusive sob o crivo do contraditório, permitissem a segura convicção de que “Alemão” houvera concorrido para o homicídio de Valdecir. O processo principal superava duas mil páginas, além de possuir vários apensos contendo farta documentação originada de pedidos de interceptação telefônica e quebra de sigilos bancários, fiscais e telefônicos. Era preciso estudar e conhecer minuciosamente todas as informações angariadas, relevantes ou não para o julgamento da causa, a fim de que não fôssemos surpreendidos em plenário. E não fora de outro modo que, exatamente nas entrelinhas da documentação, encontramos a “cereja do bolo”, surpreendendo estrategicamente a combativa defesa na réplica.

Durante a fala inaugural dos debates, seguimos a mesma metodologia utilizada no primeiro julgamento, tendo escaneado todos os principais documentos contidos nos autos e estruturado uma apresentação em projetor bastante dinâmica, com destaque aos principais trechos de depoimentos, “zoom” nas informações mais relevantes, inserção de trechos de vídeos relativos a reportagens jornalísticas sobre o caso, tudo seguindo a lógica do discurso acusatório, de modo que a sequência cronológica da apuração dos fatos pudesse ser acompanhada por todos os presentes. Fora preciso, ainda, desmascarar, de antemão, a estratégia da defesa de “Alemão”, adotada em fase processual anterior, quando confessou sua participação tão somente no crime de homicídio que vitimou Ademir Hoffmann, demonstrando que tal estratagema foi minuciosamente pensado e arquitetado, de modo a buscar a confiança e credibilidade dos jurados quanto à negativa de autoria/participação referente ao homicídio praticado contra Valdecir Batista Miranda. Reforçamos, por fim, nossa expectativa quanto à sustentação veemente da negativa de autoria em plenário, o que não ocorrera, mostrando, ainda, aos jurados uma lista impressa de perguntas que desejávamos formular ao acusado diante dos olhares atentos dos ínclitos juízes de fato.

A defesa, por seu turno, buscou suscitar a dúvida, desacreditando as palavras da irmã da vítima ao argumento de sua parcialidade em razão do parentesco e de divergências periféricas. Questionou a credibilidade dos investigadores de polícia ouvidos em plenário e, ainda, de todas as informações colhidas no inquérito policial. Pautou o discurso firme no argumento de insuficiência de prova, mesmo com a atuação direta do Promotor de Justiça durante a fase inquisitiva, sustentando que a acusação não havia logrado comprovar, de forma minimamente satisfatória, o envolvimento de “Alemão” no homicídio praticado contra Valdecir Batista Miranda. Rogou a defesa, ainda, que os jurados dessem credibilidade à negativa de autoria, porquanto “Alemão” teria demonstrado sinceridade e arrependimento ao confessar sua participação no homicídio que vitimou Ademir Hoffmann. Sustentou, por fim, que, em relação a este, “Alemão” constou, de fato, como beneficiário da indenização do seguro de vida, tendo procedido ao levantamento dos valores respectivos. De outro lado, no tocante ao seguro de vida em nome de Valdecir, os beneficiários haviam sido terceiras pessoas, não havendo nenhuma prova que demonstrasse o envolvimento de “Alemão” com a trama destinada ao recebimento de qualquer valor correspondente.

Na réplica, refutamos os argumentos apresentados pelo combativo Defensor Público, reafirmando a existência de indícios robustos e suficientes de autoria imputada ao acusado “Alemão”. Sustentamos que a prova do recebimento de valores por “Alemão”, tal como exigida pela defesa, restara inviabilizada, haja vista que a vultuosa quantia de R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) havia sido integralmente sacada na “boca do caixa” pela beneficiária e integrante da quadrilha M.I., objetivando exatamente impedir/dificultar o rastreamento dos valores repartidos entre os componentes do bando. Ademais, tal circunstância seria absolutamente irrelevante para decisão quanto ao crime de homicídio. Nesse instante, reservando a “cereja do bolo” para o exato e oportuno momento da réplica, chamamos a atenção dos jurados para as imagens de alguns documentos que seriam projetadas no telão, e surpreendemos a defesa, desafiando-a a responder duas indagações que constavam em nosso rol de perguntas inicialmente destinadas ao réu: a primeira, por qual razão o mesmo endereço e número de telefone residencial do acusado “Alemão” (informado em seu interrogatório e destacado na imagem audiovisual) constava na apólice do seguro de vida de Valdecir, nos espaços destinados ao endereço e telefone da vítima (projetou-se, então, a apólice respectiva). E a segunda, como justificaria o fato do exato local do homicídio de Valdecir (MT 242, Km 05 – apontado no laudo pericial de constatação de local do crime) constar como endereço informado pelo acusado “Alemão” à Receita Federal, em todas as declarações anuais de imposto de renda dos últimos anos (sendo a documentação projetada sequencialmente no telão).

Diante do silêncio absoluto e sob os olhares atentos dos jurados, concluímos a réplica com elaborada peroração e, na sequência, a defesa fez uso da tréplica, sem apresentar, porém, respostas convincentes para as indagação formuladas.

Submetido ao veredicto do Conselho de Sentença, “Alemão” foi condenado nos termos da denúncia (como incurso nos artigos 121, § 2º, incisos I, III e IV e artigo 288, ambos do Código Penal), tendo sido aplicada pelo magistrado presidente a pena total de 18 anos e 08 meses de reclusão, em regime inicial fechado.

Ao final dos trabalhos, aproximaram-se as irmãs da vítima conduzindo sua genitora, que, num ato singelo e despretensioso, abraçou-nos acaloradamente por alguns instantes. Em seguida, retirou de um dos dedos um anel solitário em ouro amarelo com pedra vermelha e pediu que aceitássemos, como forma de gratidão, a única joia que possuía, herança de família e de valor inestimável, dizendo que jamais haveria como retribuir financeiramente o serviço prestado em defesa da vida de seu filho. Com muita amorosidade, recusamos a oferta, enfatizando que nosso trabalho já estava sendo “remunerado” por algo também inestimável: a satisfação do dever cumprido.

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