::Confraria do Júri::

 
 

 

      

Enquete

Você é a favor da ampliação da competência do Tribunal do Júri para outros crimes seguidos de morte?
 
Sim, para qualquer crime doloso seguido de morte.
Sim, com exceção do estupro seguido de morte.
Não. A competência do Tribunal do Júri deve permanecer a mesma.
Não tenho opinião formada.

 
Ver resultados
 
  
  
     Artigos
 
08/05/2023  - Reflexões sobre o protagonismo da vida no Tribunal do Júri
 
César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri (MP-MT), mestre em Direitos Humanos e Fundamentais pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e autor do livro A Defesa da Vida no Tribunal do Júri. Texto veiculado no site Conjur.

No Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma, pregado em 1669 em Lisboa, o maior orador sacro da língua portuguesa, Padre Antônio Vieira, ensinou que "não basta ver para ver, é necessário olhar para o que se vê" (1). Então, é preciso ver e também olhar para o juiz natural dos "crimes de sangue" com o escopo de compreender a instituição do Tribunal do Júri.

Por óbvio, o direito à vida é a pedra angular do procedimento dos crimes dolosos contra a vida (artigos 406/497 do CPP), sobretudo em seu ponto culminante, o julgamento popular. Quando isso é esquecido, tudo é esquecido.

A vida é a fonte de todos os interesses, direitos e deveres humanos. É o centro da organização política, social, econômica e jurídica do Estado. Toda pessoa tem o direito à vida, de gozá-la e desfrutá-la, incumbindo ao Estado o dever de protegê-la de forma eficiente, pois há um direito humano e fundamental que precede todos os demais: o direito de não ser morto.

O princípio axiológico fundamental do ordenamento jurídico e do sistema de justiça deve ser o da plenitude da tutela da vida (2), que impõe a sua proteção integral multinível, envolvendo todo o aparato estatal legislativo, administrativo e judiciário, bem como todas as pessoas e a sociedade civil. Na linha do pensamento de Rudolf Von Ihering, a luta pela defesa e proteção do direito à vida é um dever de todos, de cada pessoa, para consigo própria e para com a sociedade, e de todos os componentes do Estado (3).

Nesse contexto, a tutela estatal objetiva a preservação do ser humano, haja vista que a vida, além de ser bem jurídico individual, carrega inestimável valor social. Ao Estado incumbe a precípua função de garantir a coexistência pacífica e segura entre as pessoas. Por força de imposição constitucional e convencional de proteção do direito à vida, há um imperativo de tutela jurídica e jurisdicional como sua garantia.

De nada adianta discutir e afirmar o direito à vida sem garantir a sua efetiva defesa e proteção. Sem isso, tal direito está fadado a não ser levado a sério (4). Logo, incumbe ao Direito Penal proteger a vida humana, emprestando-lhe tutela jurídica, e ao Tribunal do Júri, no exercício do Processo Penal, compete a proteção jurisdicional através de tutela repressiva (retributiva — em uma dimensão individual) e inibitória (preventiva — em uma dimensão individual e social), visando conferir maior segurança pública, manter a indispensável paz social e preservar a existência das pessoas.

Conforme o disposto no artigo 5º, XXXVIII, "d", da Constituição, a tutela jurisdicional penal da vida humana pertence ao Tribunal do Júri. Por consequência, é imprescindível analisar o processo que alberga o crime doloso contra a vida sob a perspectiva vidacêntrica. É dizer: o alcance e o sentido do Tribunal do Júri devem ser interpretados conforme o bem jurídico jurisdicionalmente tutelado, qual seja, o direito à vida (artigo 5º, caput c.c. XXXVIII, "d", da CF). Ou seja, o Tribunal do Júri, que julga os "crimes de morte", é instrumento de defesa, proteção e reafirmação da vida humana. Isso jamais pode ser esquecido.

O atentado contra a vida de uma pessoa, o extermínio de um ser humano, o dano aos projetos de vidas (5) e o sofrimento dos entes queridos e amigos da vítima exigem punição idônea, séria e grave para reafirmar a importância do direito à vida (prevenção geral positiva) e, simultaneamente, prevenir novos ataques a outras vidas, seja pela intimidação (prevenção geral negativa), seja pela retribuição (prevenção especial negativa). A interpretação dos fatos, das provas e das leis deve ser orientada pelo princípio da plenitude da tutela da vida.

Vale dizer, o Estado deve atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e punir violação à fonte de todos os direitos humanos: a vida. O processo penal não é mero escudo do acusado, porque é instrumento para a concretização da justiça. Isso inclui punição séria e idônea ao violador.

Por isso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com decisões vinculantes, tem exigido o cumprimento de obrigações estatais de proteção dos direitos humanos violados, com o fito de obstar a impunidade (6) e proteger judicialmente vítimas e seus familiares. Não à toa que o Brasil fora condenado várias vezes pela corte especificamente por impunidade em homicídios.

Aliás, a impunidade é a mão invisível da descrença na justiça e do incremento da criminalidade. A impunidade de ontem são as injustiças de hoje. A impunidade de hoje são as injustiças de amanhã. Afinal, o grau de civilização de um povo é mensurável pelo grau de proteção do direito à vida, que inclui a seriedade e a gravidade da punição ao assassino, pelo Estado. A falta de punição ou a punição insuficiente ao assassino viola os direitos humanos, gera o descrédito no sistema de Justiça, abre espaço para a vingança privada e pavimenta o caminho do regresso à guerra de todos contra todos.

Isso significa dizer que a violação à norma estabelecida pelo artigo 121 do CP, qual seja, "não matarás", invoca a lembrança reluzente de que a vida é direito inviolável, que reclama proteção jurídica e jurisdicional integral. A sanção deve ser idônea e séria, para fins de efeitos repressivo e preventivo. É preciso reafirmar o compromisso e o dever de que todas as pessoas que cruzarmos na vida cumprirão com o dever de não matar.

Bem por isso, no procedimento dos crimes dolosos contra a vida, a interpretação deve ser guiada pela bússola pro vita (7), em busca da efetiva e adequada tutela jurídica e jurisdicional da vida humana. Logo, é vital que os olhos estejam fixados no princípio da plenitude da tutela da vida humana, que permeia todo o ordenamento jurídico e que consiste em um vetor de interpretação legislativa na proteção do bem indisponível e inviolável, que é a vida. Esse princípio deve informar e orientar a interpretação e aplicação das normas jurídicas, inclusive, as que incidem direta ou indiretamente no procedimento dos crimes dolosos contra a vida (direito material e processual).

Tudo bem-visto, a conclusão a que se chega é tão somente uma: segundo a interpretação literal-teleológica e sua localização topográfica no texto constitucional, verifica-se que o Tribunal do Júri consiste em mandado constitucional expresso de jurisdição popular nos casos em que o direito à vida é deliberadamente violado (artigo 5º, XXXVIII, da CF). É a expressão da legitimação democrática da função jurisdicional, com o selo da soberania popular (artigo 1º da CF). E isso tem uma razão de ser: trata-se de instituição democrática e instrumento de tutela jurisdicional adequada e efetiva da inviolabilidade do direito à vida (artigo 5º, caput, da CF). Se bem visto e olhado o Tribunal do Júri, é possível constatar que essa instituição, ao contrário do que muitos pregam, não é escudo de quem se levantou contra a existência de outrem, mas sim instrumento de tutela jurisdicional penal do alfa e o ômega de todos os direitos humanos e fundamentais, a vida. Quando isso é esquecido, tudo é esquecido (8).

...........................

1 - VIEIRA, Antônio. Sermões: Padre Antonio Vieira. Organização e introdução de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2000.

2 - Cf. LOUREIRO, Caio Márcio. Princípio da plenitude da tutela da vida no tribunal do júri. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017. p. 23-24.

3 - IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Tradução de João Vasconcelos. 18a ed. São Paulo: Forense, 1999.

4 - Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

5 - No Caso Loyaza Tamayo vs. Peru, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu pela primeira vez a existência e a autonomia conceitual do dano ao projeto de vida. O ponto extremo do dano ao projeto de vida é o assassinato, que, obviamente, além da vítima, afeta a todos os seus entes queridos. Isso significa dizer que matar alguém implica na extinção do projeto de vida da vítima e no dano aos projetos de vida de seus familiares. O assassinato consiste em multiviolação aos direitos humanos.

6 - Segundo a Corte Interamericana, "impunidade é a falta em seu conjunto de investigação, persecução, captura, instrução processual e condenação dos responsáveis pelas violações dos direitos protegidos pela Convenção Americana, uma vez que o Estado tem a obrigação de combater tal situação por todos os meios legais disponíveis, já que a impunidade propicia a repetição crônica das violações de direitos humanos e a total desproteção das vítimas e seus familiares". (CORTE IDH. Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala. Sentença de 25 de novembro de 2000, Série C, N. 70, §211)

7 - Do contrário, estar-se-á desprotegendo, ou protegendo de forma deficiente, o direito à vida. (Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechtswirkungen um Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989. p. 161).

8 - Nos julgamentos dos Temas 1.068 (execução imediata da condenação) e 1.087 (recurso contra absolvição injusta) de Repercussão Geral, os eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal não devem se esquecer que a tutela jurisdicional penal da vida humana pertence ao Tribunal do Júri.

Voltar


comente/critique essa matéria

 

 Confraria do Júri - Rua 6, s/nº, CPA - Cuiabá/MT