César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri e presidente da Associação dos Promotores do Júri (Confraria do Júri).
O professor e escritor inglês Ralph Keyes (1) afirma que a civilização humana tem experimentado a era da pós-verdade. Há muitos experts na praça com a ideia de que tudo é relativo e, consequentemente, que a verdade é secundária. O real sentido das coisas é relegado para o segundo plano. As palavras vão perdendo a essência. O que é passa a não ser, segundo a vontade do intérprete. É a devastação da realidade.
A pós-verdade invadiu também o mundo jurídico. E o Judiciário nacional, ao longo dos anos, vem de forma proposital e sistemática relativizando conceitos, princípios, valores e regras do arcabouço jurídico.
Descaradamente, em nome da hermenêutica, acrescenta incisos, adiciona parágrafos e alíneas, onde não existem e não devem existir. Um exemplo eloquente é o que tem feito com a soberania do Tribunal do Júri.
Vale dizer, por puro arbítrio interpretativo na busca desenfreada de dar a última palavra em matéria que lhe falta legitimidade, os tribunais, em ato claro de usurpação de competência, simplesmente atropelam a soberania popular que faz morada no Tribunal do Júri, instituição riscada em pedra no texto constitucional.
Esse ataque é manifesto.
Para tanto, basta ver que, segundo o dicionário da língua portuguesa Houaiss (2), soberania significa qualidade ou condição de soberano, autoridade suprema do poder do Estado. Soberano, por sua vez, significa que detém o poder sem restrição, que ocupa o mais alto grau em seu gênero. É um vocábulo unívoco.
Na República Federativa do Brasil o único soberano é o povo. No parágrafo único do artigo primeiro da Constituição está estampado o princípio da soberania popular: todo poder emana do povo. E seu corolário, o princípio da soberania dos veredictos, é uma das vigas mestras do Tribunal do Júri.
O mais elementar bom senso jurídico informa que, ao prever, então, o princípio da soberania dos veredictos no Tribunal do Júri, quis o constituinte reafirmar o poder do povo no âmbito do Judiciário.
A História ensina que o poder está em quem dá a palavra final sobre determinado assunto. Ou seja, tem poder quem dá a última e definitiva palavra. E, na forma do inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição, quem exerce essa função nos crimes dolosos contra a vida é o povo, e não o Judiciário.
Basicamente, isso tem quatro consequências inquestionáveis: primeira, os veredictos vinculam a sentença do juiz presidente; segunda, os veredictos estão imunes a qualquer tipo de alteração por parte dos tribunais; terceira, o início do cumprimento da pena deve ocorrer imediatamente à condenação pelos jurados (3); e, quarta e última, os veredictos só podem ser alterados por outros veredictos decorrentes de novo julgamento pelo Júri.
Daí a necessidade de a defesa no Júri ser plena, completa (princípio da plenitude da defesa), uma vez que a decisão do cidadão-jurado implica em graves consequências ao réu, sendo a principal delas o cumprimento imediato da pena, já que o mérito do veredicto não pode ser alterado pelos membros do Judiciário.
Qualquer entendimento contrário é filho da soberba do Judiciário que, submerso na era da pós-verdade, não faz outra coisa senão atropelar a soberania do povo.
Quem quer que não perceba isso, está divorciado do texto constitucional e da ideia mais básica de democracia.
A Constituição não deixa qualquer brecha de dúvida, pois foi muito clara e precisa ao prever a soberania dos veredictos e assim agiu para proteger o Tribunal Popular de qualquer ataque oriundo do Legislativo ou do Judiciário.
Infelizmente, o Judiciário, ao longo dos anos vem promovendo o esvaziamento do conceito de soberania dos veredictos. Sua agenda é óbvia: dar a última palavra em matéria afeta apenas ao Tribunal do Júri. Quer ter o poder que não tem.
Não por coincidência, há muito vem admitindo alteração dos veredictos em sede de revisão criminal. É um atentado à Constituição. Ao detectar possível ocorrência de erro judiciário na decisão dos jurados deve enviar o condenado para novo julgamento pelo Júri e não o substituir, como tem feito. Não tem poder para isso.
É o preço da democracia. E, embora ninguém atribua à democracia a qualidade da perfeição, há um consenso geral que Norberto Bobbio (4) resumiu com esta lição irretocável: “A única solução para os males da democracia é mais democracia.”
Aliás, esse costume da toga em atropelar o veredicto coberto pela coisa julgada é um verdadeiro absurdo. Ora, é sabido que em sede de apelação o veredicto não pode ser alterado. Então, com maior razão, é inadmissível modificá-lo em sede de revisão criminal, já que foi imunizado pela coisa julgada.
Noutras palavras, assim como não há semi-grávida não existe semi-soberano. O Júri é ou não é soberano. As duas coisas não pode ser simultaneamente. Como disse Parmênides de Eléia (5), “é um absurdo impensável considerar que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo”.
Bem por isso que respeitar a soberania do Júri significa respeitar a própria ideia de democracia, regime em que o poder está nas mãos do povo.
O Júri é o tribunal de última instância para resolução dos crimes dolosos contra a vida. É ele quem deve dar a última e definitiva palavra nos crimes de sangue. Interpretação diversa disso é fruto da era da pós-verdade.
A conclusão fatal é esta: por ser soberano, o veredicto popular bitola a sentença do juiz presidente; impede sua alteração em sede recursal ou impugnatória por parte de qualquer tribunal; e exige o cumprimento imediato da pena imposta, já que o mérito não pode ser modificado a não ser por outro veredicto popular. Assim, e somente assim, a Constituição será respeitada e a era da verdade restabelecida.
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1 - KEYES, Ralph. The post truth era: Dishonesty and deception in contemporary life. St. Martin’s Press, 2004.
2 - HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2008.
3 - “A condenação pelo tribunal do Júri em razão de crime doloso contra a vida deve ser executada imediatamente, como decorrência natural da competência soberana do júri conferida pelo art. 5º, XXXVIII, d, da CF”. (STF – Pleno – ADC’s 43 e 44 – Min. Luís Roberto Barroso, j. 05/10/2016)
4 - BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo. 6ª ed., Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1986.