- Soberania do povo: A clemência como ato de (in) justiça no Tribunal do Júri
Luiz Eduardo Sant´Anna Pinheiro,
promotor de Justiça com atuação no Tribunal
do Júri de Dourado, MS.
Até que ponto o julgamento por clemência,
onde as emoções predominam, os estigmas do
passado influenciam e as questões sociais se
destacam, pode concretizar a equidade? Vamos
entender melhor o assunto.
Na última semana, em 2 de outubro de 2024, o
Supremo Tribunal Federal (STF), em uma
decisão histórica e, por maioria, esclareceu
que a soberania dos veredictos não é
absoluta. Esta temática, que toca nas
fundações da justiça penal e nos direitos
fundamentais, merece nossa reflexão.
Como cediço, a partir da reforma do Código de
Processo Penal, em 2008, instituiu-se no
artigo 483, inciso III, o quesito obrigatório
nas decisões do Tribunal do Júri, qual seja:
“O jurado absolve o acusado?”. É sobre os
limites dessa previsão legal que a Suprema
Corte brasileira foi instada a se manifestar.
Relembrando, o recurso extraordinário
envolvia a possibilidade de um novo
julgamento pelo Tribunal do Júri, após uma
decisão absolutória pelo Conselho de
Sentença, sob a arguta de ser manifestamente
contrária às provas dos autos. A questão
central era se essa reanálise pela instância
recursal violaria a tão proclamada soberania
dos veredictos, garantida pelo artigo 5º,
inciso XXXVIII, alínea "c", da Constituição
Federal.
Por este cenário, a Corte Suprema reconheceu
a repercussão geral do assunto e o catalogou
como Tema 1087, em que o órgão colegiado
deveria deliberar acerca da “possibilidade
de Tribunal de 2º grau, diante da soberania
dos veredictos do Tribunal do Júri,
determinar a realização de novo júri, em
julgamento de recurso interposto contra
absolvição assentada no quesito genérico,
ante suposta contrariedade à prova dos
autos”.
A conclusão do “leading case” foi no
sentido de que, mesmo nesses casos, em que a
decisão emanada pelos jurados é sigilosa e
imotivada, pois advinda da íntima convicção,
é plenamente cabível o questionamento
recursal.
Temos que a decisão da Corte, que deu
provimento ao recurso e determinou que o
recorrido seja submetido a um novo
julgamento, é acertada e necessária.
Dentre os conceitos que permeiam a temática,
dois deles merecem destaque. Vejamos:
O primeiro deles a abordar é a “Clemência no
Contexto Jurídico”.
Clemência, no contexto jurídico, refere-se à
disposição de um tribunal ou de um júri em
mostrar misericórdia ou indulgência em
relação a um réu, muitas vezes resultando em
uma sentença mais branda ou mesmo em
absolvição. Embora a clemência possa ser
vista como um ato de humanidade e compaixão,
ela também pode, em certas circunstâncias,
comprometer a justiça, especialmente quando
não está fundamentada em evidências
concretas.
Com a devida vênia a posicionamentos
contrários, tenho que, ao se permitir que uma
absolvição, sustentada apenas por clemência
ou por motivos subjetivos dos jurados,
permaneça intocável é arriscar a instalação
do arbítrio no coração do sistema judiciário.
A clemência, quando aplicada sem a devida
consideração das provas, pode minar a
confiança pública no sistema judicial,
sugerindo que decisões possam ser
influenciadas por fatores emocionais ou
pessoais, em vez de serem baseadas em lastro
fático-probatório processual.
O Código de Processo Penal (CPP) já
estabelece que só haverá anulação do
julgamento popular quando a decisão não tiver
qualquer respaldo nas provas apresentadas.
Portanto, ao afirmar que uma resposta
afirmativa ao quesito genérico é indevida,
independentemente da identidade da vítima ou
do autor do crime, reafirmamos nosso
compromisso com uma justiça efetiva e
fundamentada.
Outro aspecto que se avulta é a reflexão
acerca da garantia do “Duplo Grau de
Jurisdição”.
A decisão do STF reforça a importância do
duplo grau de jurisdição e da paridade de
armas entre as partes no processo penal. Não
se trata apenas de garantir direitos; trata-
se de assegurar que a verdade dos fatos
prevaleça em cada caso.
A revisão das decisões do júri é um mecanismo
essencial para evitar injustiças e garantir
que o sistema judiciário funcione como um
verdadeiro instrumento de equidade.
Por mais óbvio que possa parecer, impende
rememorar que a soberania dos veredictos – assim como outras decisões judiciais -
não pode ser considerado como um manto que
encobre decisões injustas ou desprovidas de
fundamentação probatória.
Afinal, é de consenso geral que a justiça
penal deve ser uma via de mão dupla, qual
seja: ao mesmo tempo em que se pune os
violadores da lei, protegendo a sociedade,
também se exige que a resposta estatal penal
seja concretizada mediante a adoção de
critérios, sempre permeado por um mínimo de
lastro probatório.
Ora, se os jurados decidirem de forma
manifestamente contrária às provas
apresentadas, qual a razão de se obstar a
possibilidade de reanálise dessa decisão?
O direito para o caso concreto não deve
surgir exclusivamente da discricionariedade
ou das forças intrapsíquicas do julgador,
conforme sua vontade e senso de justiça, mas
a partir do confronto de argumentos e provas
exibidos pelos litigantes. Para tanto, deve-
se reconhecer que é direito e dever das
partes de contribuírem para a formação do
provimento jurisdicional criminal, a fim de
que seja justo e legítimo. E, em decisões
desprovidas de qualquer motivação razoável, a
via recursal não pode ser suprimida.
Admitir que uma absolvição, sustentada apenas
por clemência ou por motivos subjetivos dos
jurados, possa permanecer intocável é correr
o risco de permitir que o arbítrio se instale
no coração do sistema judiciário. O Código de
Processo Penal (CPP) já estabelece que,
nesses casos, somente haverá anulação do
julgamento popular quando a decisão não tiver
qualquer respaldo nas provas apresentadas.
Ao nosso sentir, a soberania dos veredictos
deve coexistir com a responsabilidade e a
vigilância sobre as decisões judiciais.
Somente assim poderemos construir um sistema
jurídico robusto e justo, onde cada voz no
tribunal seja ouvida e cada decisão esteja
alicerçada na verdade dos fatos.
E lembremos sempre: A justiça não é apenas um
ideal; é uma prática diária que exige nosso
comprometimento contínuo. Este é o caminho
para um sistema jurídico que verdadeiramente
sirva ao povo e à verdade.