Última Instância
Participar como defesa ou acusação de um tribunal do júri é sempre um desafio, para ambas as partes. Quando se trata de um dos casos mais emblemáticos do cenário criminal brasileiro, as dificuldades aumentam. Doze anos após o julgamento do serial killer Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque, o promotor do caso Edilson Mougenot Bonfim transformou em livro o trabalho realizado no caso, que resultou na condenação do réu a 121 anos, 8 meses e 20 dias de prisão.
Em entrevista exclusiva a Última Instância, Bonfim afirmou que um dos principais problemas enfrentados na época, em 1998, foi encontrar material disponível sobre o uso da psiquiatria nos tribunais. De acordo com o promotor, “ao observarmos a literatura brasileira, não havia nenhuma obra sobre serial killer publicada no Brasil e a Internet ainda estava engatinhando”.
Para o professor de direito penal, apesar de novos estudos terem sido publicados nos últimos anos, “os psiquiatras brasileiros, os que fazem a psiquiatria Forense, não têm uma imersão maior no tema, porque, felizmente, não temos um grande número de serial killers, como, por exemplo, têm os Estados Unidos”.
A notabilidade do caso também conquistou a imprensa. Segundo Bonfim, a atuação dos meios de comunicação foi “ética” e não interferiu no andamento do caso. A comoção social foi semelhante a de episódios recentes como o julgamento de Suzane Richthofen, e do casal Nardoni. “A sensação que eu tive ao terminar o julgamento é de que se esperava exatamente o resultado que teve”, afirmou, elogiando o papel da mídia.
Os bastidores da Justiça, a construção da promotoria e a atuação da defesa, nesse caso, tornaram-se fonte de pesquisas e referência para futuros julgamentos, dado a sua repercussão. Entrelaçando conceitos de filosofia, psiquiatria, direito penal e por conta da experiência prática, o livro escrito pelo promotor de Justiça sobre o assunto, O Julgamento de um Serial Killer – O Caso do Maníaco do Parque, acaba de chegar à segunda edição.
Leia abaixo a entrevista na íntegra com o promotor Edílson Mougenot Bonfim:
Última Instância - Como foi lidar com um caso de tanta repercussão e tão lembrado como o caso do Maníaco do Parque?
Edílson Mougenot Bonfim - Do ponto de vista da responsabilidade, eu sempre entendi que a Justiça nas grandes causas, nada se difere das pequenas causas. Então, nesse sentido de responsabilidade, eu sempre tive o mesmo até nas pequenas causas, esse simplesmente era um desafio de fazer uma prestação de contas à sociedade, inclusive através da mídia. Nesse caso, a mídia fazia um paralelo muito intenso, obrigava que nós andássemos sobre o fio da navalha, porque, a par do rigor processual, de respeitar o pressuposto procedimento legal, você tinha em paralelo sempre um julgamento público pautado pela mídia.
Última Instância - Essa interferência da mídia foi até que ponto durante o julgamento?
Edílson Mougenot Bonfim - Foi boa e se pautou com muita ética. A gente cuidava para a mídia não compreender mal as informações e não distorcê-las, porque a opinião pública é a opinião que se publica e se a opinião pública não fosse bem esclarecida poderia ter uma informação deformada e a partir daí acompanhar o julgamento com algo que não constava do processo. Mas, no geral, a mídia se pautou muito bem e o resultado foi, ao meu sentir, o melhor possível para a sociedade. A sensação que eu tive ao terminar o julgamento é de que se esperava exatamente o resultado que teve. O réu ser considerado normal, essa é a verdade cientifica dos fatos.
Última Instância - O senhor estudou juspsiquiatria, que é a vinculação da psiquiatria com o mundo jurídico penal, para atuar no processo. A defensoria e a bancada de psiquiatras tiveram a mesma preocupação? Como o senhor avalia essa participação?
Edílson Mougenot Bonfim - Tudo realmente é uma questão de interesse, ou de responsabilidade, ou de conhecimento de cada um dos partícipes do processo penal. Da minha parte, eu sabia o quão emblemático era esse caso para a Justiça brasileira, porque a partir daí ele podia pautar muitos outros julgamentos, como tem pautado. Fui estudar no exterior para saber qual resposta de outros ordenamentos jurídicos mais desenvolvidos que o brasileiro. Então cabe um reparo e uma análise: os nossos psiquiatras, que foram chamados à condição de peritos para esse caso, jamais haviam feito uma perícia em caso de serial killer. Portanto, os conhecimentos deles não poderiam nesse caso ser mensurados pela prática e como medicina é validada pela observação e experiência em casos análogos, reconheço que era bastante difícil para esses psiquiatras poderem enxergar a dimensão do problema, tal como a literatura juspsiquiátrica que outros países já tinham.
Ao observarmos a literatura brasileira, não havia nenhuma obra sobre serial killer publicada no Brasil na época e a Internet ainda estava engatinhando. De lá para cá foi dado um salto muito grande. Ainda assim, os psiquiatras brasileiros, os que fazem a psiquiatria Forense, não têm uma imersão maior no tema, porque felizmente não temos um grande número de serial killers, como, por exemplo, tem os Estados Unidos.
Última Instância - Como foi a experiência de estar frente a frente com Francisco de Assis, um réu considerado “carismático, atencioso”, que tinha até fãs na prisão?
Edílson Mougenot Bonfim - O réu, que se apresenta em juízo e durante o julgamento, não é a pessoa que se apresenta no dia do crime. Ali ele está ou naturalmente diferente pelo impacto da prisão. O bombardeio midiático, a cobrança eventual de familiares faz com que ele naturalmente possa estar diverso ou ele está propositalmente maquiado moralmente, durante o julgamento ou durante a instrução processual. Portanto, nós não falaríamos de uma pessoa simpática e nem antipática, diria uma pessoa com um comportamento análogo, de réu; abaixando a cabeça, desviando o olhar, dissimulado.
O dia a dia dele, para ele abordar as moças, eu não tenho a menor dúvida que ele era o extremo da simpatia. Quando ele entrava no parque, que as matava, ele se transformava no homicida que ele era, a simpatia desaparecia e dava lugar a uma expressão fisionômica que pretendia incutir pavor nas vítimas. No julgamento, ele se comportava tipicamente como qualquer réu, de uma forma dissimulada, afetando uma bondade, uma calma, que a rigor era conveniente para ele naquele momento.
Última Instância – Houve envolvimento emocional de sua parte no caso?
Edílson Mougenot Bonfim – Quando a gente fala emocional, pode dar a impressão que a razão foi perturbada. Não; eu tive um envolvimento de grande responsabilidade. Primeiro, o bom profissional é aquele que gosta do que faz, quanto mais você gosta, melhor você será . Eu sempre fui absolutamente apaixonado, mas uma paixão lúcida, pelo Tribunal do Júri. Eu organizei o 1º Congresso Nacional dos Promotores do Júri, levantei uma bandeira que estava meio esquecida em São Paulo, no Brasil que é a Bandeira do Júri.
O homicídio, tão banalizado ele está, que o tema do júri praticamente saiu de “moda”, a não ser em casos emblemáticos que de tempo em tempo acontece; e precisam ser muito emblemáticos. Mata-se num final de semana em São Paulo mais do que anos de guerra entre o Líbano e seu vizinho no Oriente Médio, então o índice de homicídios no país é altíssimo ainda; um índice de guerra civil.
O direito penal, que abrange do céu a terra, é no júri que ele tem sua expressão mais forte, porque ali se julgam os casos de homicídios e esse era um dos casos mais emblemático de todos. O meu encantamento se duplicou e me fez trabalhar três vezes mais. Sem uma emoção irresponsável, mas com o comprometimento que o caso me obrigava, eu saí para fazer um estudo racional e de todas as hipóteses possíveis.
Última Instância – E o resultado desse trabalho foi levado ao júri. Qual foi a conclusão dos estudos?
Conclui, juntamente com grandes cientistas do direito que o réu deveria ser tratado e considerado como imputável. Porque, até agora, a ciência não tem condição de dar uma resposta melhor do que essa que foi dada, tanto que os próprios psiquiatras que deram o laudo de semi-imputabilidade, ao final concordaram conosco, durante inquirição em plenário, retificando e complementando o laudo deles. O que era para ser uma perícia virou um festival de hipóteses e ao final, com as informações que eu trouxe, com a sabatina que fiz em plenário, eles concordaram e acharam melhor considerá-lo imputável.
Última Instância – Com uma confissão inicial e, posteriormente, com os rumos do processo, como o senhor analisa a atuação da defensoria?
Edílson Mougenot Bonfim - A defensoria se aplicou e se aplicou bastante, mudou de tese ao longo do processo. No começo, a defensoria dizia que não era ele, depois passou a tratá-lo como inimputável e, ao final, queria sustentar o laudo de semi-imputabilidade.
A defesa não é mágica; a causa era difícil para ambas as partes, porque a situação era altamente discutível e ainda continua em debate, embora já tendo transitado em julgado. O caso dá pano para muita discussão, então a defesa se aplicou nos limites da força dela, e nos limites da prova. O problema é que a ciência não falava a favor da defesa e se a ciência falasse a favor da defesa, falava com uma voz não tão clara, falava com uma voz fraca. A melhor clareza falava em favor da sociedade no sentido de tratá-lo como imputável.
Última Instância - O enfraquecimento da defesa ocorreu por causa dessas mudanças de tese?
Edílson Mougenot Bonfim - A defesa buscava algo a favor do réu, mas esse algo a favor do réu não era a verdade, então ficava tentando transformá-lo no que ele não era, ou buscando provas que não existiam. Nós sempre trabalhamos com a verdade, a verdade única, com aquilo que acreditávamos, que de fato ao final ficou provado: que ele era imputável. Agora, a questão de normalidade e anormalidade psíquica não é um problema só no Brasil, no mundo inteiro se discute isso, e prova da celeuma a respeito disso é que o próprio Código Internacional de Doenças ora coloca uma nova doença, ora retira uma antiga; ora recomenda um remédio, ora dá outro remédio. A medicina, como dizem os franceses, é como o amor, a gente não pode dizer nem “sempre”, nem “jamais”, isso pode ser variável. Hoje se ama e amanhã odeia, o remédio que hoje salva, amanhã pode matar.
Última Instância – O livro que o senhor lançou sobre o caso acaba de chegar à segunda edição. Qual a importância de repercutir o júri do Maníaco do Parque mesmo 12 anos depois do crime?
Edílson Mougenot Bonfim - Esse caso ele é emblemático para sociedade como um todo e interessa demais aos acadêmicos de direito, pela ampla pesquisa que existe a respeito do tema, a maior que existe no Brasil, uma das maiores no mundo já feitas.
Penso ter conseguido fazer um bom vínculo,um bom linhame, um bom elo entre as discussões de filosofia, psiquiatria e direito penal, o que é raríssimo se encontrar estudos a respeito. Penso que o tema interessa igualmente aos estudantes de medicina que se interessam pela psiquiatria, aos estudantes das faculdades de comunicação, porque já existem até dissertação e tese de mestrado e doutorado com os discursos que fiz nesse caso, pela análise linguística do conteúdo do discurso.
Interessa igualmente aos jornalistas, porque a imprensa tem um papel muito grande nesse caso e eu discuto um pouco disso no livro, citando inclusive um autor de uma obra americana chamada TV or not TV, de Ronald Goldfarb, parodiando o “To be or not to be?”, de Shakespeare. Analiso até que ponto a imprensa influência no resultado do julgamento.
Então interessa esse caso a sociedade como um todo e ao cidadão, porque penso ter conseguido fugir daquele dogmatismo puro, daquela linguagem de pedra hermética que muitas vezes caracteriza a linguagem jurídica de uma forma que o cidadão esclarecido possa ler e entender os desafios da justiça as suas limitações e o que é o tribunal do júri, com seu elogio e sua crítica.
Última Instância – O livro possibilita que os estudantes de direito vivenciem a experiência de um grande tribunal do júri, entrelaçando teoria e prática?
A grande dificuldade de um acadêmico é pegar um caso que lhe repute emblemático e ele tenha debatedor a altura para conseguir fazer a ponte entre a prática e a teoria. O estudante tem a teoria, mas não consegue visualizar o efeito prático e é somente através de um caso grande como esse, com a riqueza da perspectiva criminológica, vitimológica, psicológica, psquiátrica, sociológica, até política, penológica, que ele vai conseguir enxergar como é rico um caso criminal. Então isso serve como estímulo para que ele estude mais e com seriedade. Mais do que isso, faz ele se perguntar se ama o que está estudando e no que ele gostaria de trabalhar depois. E se ele responder positivamente a essas perguntas, não tenho dúvidas que ele vai ser um bom profissional no futuro.
O caso
Preso no dia 4 de agosto de 1998, Francisco de Assis Pereira, conhecido como o Maníaco do Parque, foi acusado de estuprar e matar 10 mulheres no Parque do Estado, no Km 16 da Rodovia dos Imigrantes. De acordo com o processo, o rapaz conquistava as moças pedindo para participarem de um ensaio fotográfico, no entanto, ao entrar na mata, transformava-se e estrangulava-as com um cadarço de tênis. Confessou os crimes com frieza e, em 2002, após denúncia do Ministério Público, foi condenado a 107 anos de prisão por roubar e violentar nove mulheres que sobreviveram aos ataques e a mais 121 anos pelas mortes confessadas. Atualmente está preso na Penitenciária de Oswaldo Cruz, interior de São Paulo.
Ficha técnica
O Julgamento de um Serial Killer
Autor: Edilson Mougenot Bonfim
Editora: Impetus
Quanto: R$ 44,90
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